Visitas

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

As coisas simples da vida

As coisas simples da vida me salvam...
Os sorrisos sem dentes...
As conversas fiadas sem nenhum sentido,
Os olhares abertos... desconfiados... mesmo os não olhares gosto.
Meu radinho a pilha...
Meu chinelo havaiana preso com alfinete na correia,
Meu prato marrom de cerâmica,
Meu fio dental após o almoço prendendo em minha coroa implantada...
O banho frio no calor dezembril prudentino...
O abraço da criança...
A chuva... a tão fogosa chuva de fim de ano...
E os fins de anos!

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

O coração do mundo

Ontem senti o coração do mundo pulsando...
No meio da multidão e da vida que teima em continuar vivendo...
Senti no coração de um pobre trabalhador a insistência da existência...
Multidão, trem, vai-e-vem, solidão.
Perdido na pluralidade de formas e cores e rostos...
Deus me concedeu um coração.
Hoje sei que meu coração não é só meu...
O coração do mundo me envolve..
E o meu é envolvido por ele.
Nele.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A vida é um trem...


Nela estamos todos em viagem.
Não importa pra onde se vai...
Não importa quando chegaremos...
Importa que o caminho faça sentido!
Viajemos juntos pelos trilhos do Bem!

Alzira e os gatos

Alzira já nasceu só. Pobre, revela em seu rosto cheio de rugas uma história triste e solitária de uma anônima que o mundo tenta se esquecer. A cor cabocla e os poucos dentes que sobraram nas mandíbulas são inconfundíveis. Lá vinha ela. Hoje, sob o calor irritante de outubro, cruzou meu caminho naquele fim de festa sem graça. Com os olhos miúdos fitos em minha face, logo reconheceu alguém para ouvir suas histórias. E sua vida. Não sei o porquê daquele encontro, só sei que os longos cabelos brancos de Alzira me seduziram como nunca.
Após um aperto de mão suave e sincero, confidenciou-me que estava com uma “tosse comprida” havia dias. Logo chamei sua atenção dizendo pra ir a um médico, pois no alto dos seus setenta anos não podia brincar com a saúde. Como eu já tinha ouvido dizer que Alzira criava uma coleção de gatos, fui logo apontando a causa da doença: “Precisa tomar cuidado com os gatos, dona Alzira, os bichinhos trazem doenças”! Mas a resposta daquela anciã me marcou profundamente: “Meu filho, cuidar de alguém não dá doença não”. Calei-me e pus-me a ouvi-la.
Nunca gostei de gatos. São altivos, solitários e auto-suficientes. No alto dos muros desfilam suas caudas longas e finas como se fossem porta-estandartes de carnaval. Com seu andar silencioso, se exibem quais modelos fotográficos dessas revistas de moda por aí. Com seus saltos majestosos gritam com o rabo que ninguém pode com eles: cães, gente ou vassouras. Nas noites de lua cheia, gemem apaixonados pelos telhados cantando seus amores e atrapalhando meus sonhos. No fundo, acho que nunca gostei de gatos porque gostaria de ser gato também. Ou talvez porque, diferentemente dos ingênuos cachorros, os gatos são coléricos e sedutores. Quando você os chama eles não vêm. Eu sempre gostei de bicho que quando você chama, vem.
Alzira, diferente de mim, gostava de gatos. Nasceu no meio deles. Desde pequena, foi acostumada a abraçá-los durante a noite. Numa vida que desabraça os pobres desde cedo, Alzira viu nos gatos o conforto de alguém que os lambesse quando pai e mãe já tinham sumido no mundo. Alzira era puro gato. Na flor da sua velhice, cultivava o hábito de recolher os bichanos abandonados por aí. Passava pelas ruas alimentando os felinos com restos de comida que pegava nas casas. Nós, que não gostamos de gatos, jamais entenderíamos isso. Não entendemos o que não gostamos.
Na casa de Alzira não tinha geladeira, nem TV, mas gato tinha. Só se via caudas e bigodes pelos cantos. Entre miaus e gemidos, a noite daquela casa era uma suruba felina. Ninhadas e ninhadas pululavam entre luas e luas que se passavam tão rápido como a cria daqueles bichos. Pouco a pouco, as pessoas do bairro souberam do amor de Alzira pela gataiada. E colaboraram: “Alzira, minha gata criou, leva procê!”, “Ô dona, minha mãe mandou matar os gatinhos, mas tô com dó, pega pra senhora!”. E assim a coleção foi aumentando. De meia dúzia passou pra dez, vinte, trinta. Mas isso não a impediu de colocar nome em cada um. Batizava-os conforme a cor, o andar, o santo do dia ou o tamanho: “Pretinho, pára de brigá co’a Bolinha!”, “Simão, tó sua comidinha aqui!”, “Pequeno, vamo passá remédio na patinha”. E assim Alzira ia. Entre miados e lambidas, suportava sem miar a vida solitária que Deus lhe dera.
Numa manhã chuvosa, ligaram no orelhão da frente da casa de Alzira e mandaram chamá-la (sim, ligaram no orelhão, porque telefone era algo que não tinha também em sua casa). Mais que depressa, calçou a chinela de couro cru e foi pisando no barro em direção ao telefone público. Era uma ligação de uma dona que morava do outro lado da cidade. Sua gata tinha criado e um dos filhotes estava pra morrer porque não sabia se alimentar. Não pegava a teta da mãe. Alzira era a única solução. Ao invés de sacrificar o bichinho, seria um gesto mais nobre doá-lo a senhorinha solitária. A culpa move o mundo.
Passados quarenta minutos, lá estava Alzira, encharcada de chuva diante da casa do gatinho moribundo. Sem guarda-chuvas, com os pés enlameados, ela esperava com seus olhos miúdos o chaninho que logo seria seu. Mesmo sem o vê-lo já tinha arrumado um nome pro bicho: Gorazim! (isso por causa da raça angorá do felino). Quando o pêlo do filhote tocou suas mãos doces e esqueléticas, os dois dentes frontais de Alzira reluziram entre as gotas insistentes daquela chuva de outubro. Um sorriso nasceu ali mesmo. Puro. Manso. Entre o barulho da porta da casa se fechando e o guarda chuva de Alzira se abrindo, ouviu-se o ronronar agradável do felino que roçava o peito seco daquela pobre mulher. A vida recomeçara novamente. Como eu desejei ser Gorazim aquela noite!
Hoje, quando vi Alzira tossindo, pensei que a sua doença seria por causa da multidão de gatos que se deitam com ela todas as noites. Pensei que a dor do mundo poderia ser curada com remédios fabricados em teorias frias e sem vida. Pensei que eu seria a solução pra tantas tosses que assolam a solidão e a pobreza de uma sociedade desigual. Mas Alzira me ensinou o contrário. Sorrindo com seus poucos e feios dentes sujos, enquanto mastigava uma coxa de frango que sobrara da mesa, Alzira me ensinou o valor do cuidado. Sem os gatos, ela não cuidaria mais de ninguém. Sem os gatos, ela não seria ninguém. Sem “cuidar” não somos ninguém. A compaixão não salva só os gatos, salva o mundo.
Nessa noite rezarei por Alzira, pra que ela continue “cuidando”. Pra que ao invés de geladeiras, TVs, celulares e outras tantas porcarias que não miam, ela continue tratando os bichanos que lhe são jogados por aí afora. Que ela continue cuidado de vidas. Mesmo as dos gatos. Rezarei pra que no céu de Alzira haja um milhão gatos sorridentes, desfilando suas caudas pela eternidade. Todos eles, juntos, siameses, angorás, vira-latas. Gatos grandes, gordos, enormes!