Visitas

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Sabiás da Madrugada

Eles cantaram a noite toda.
E só se calavam quando a chuva apertava.
No silêncio mudo da cidade cansada,
Seus assovios eram uma revolução acontecendo.
Cada sabiá de peito estufado era um soldado,
Desafiando o concreto dos prédios recheados de pessoas de concreto.
A primavera não é para todos.
É de quem ousa abrir o bico quando todos se calam.
Voar só tem sentindo cantando.
Livre não é o que possui asas,
Mas o que desafia o sono dos adormecidos pelo medo.
Eu dormi lendo poesia...
Mas os versos vieram dos sabiás da madrugada.
Eles namoravam às escuras...
E bombardearam os leitos de esperança.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Dúvidas e Dívidas

Quando o abismo se torna avenida
É porque a queda se transformou em passos.
Não se toca no amor a não ser com os pés.
E é tão arriscado pisar onde não se vê!
Nelson Rodrigues profetizou: "O pior cego é o surdo!"
Ninguém nunca verá o Amor por inteiro...
Ele é arredio aos olhos...
Se esconde nas frestas,
Onde é preciso ter dedos curtos para alcançar...
Todavia, o amor sussura...
E é preciso escutá-lo com a cabeça colada ao peito.
Há quem escute o amor nas palavras,
Há quem o escute nos gritos, apaixonados e insanos,
Mas há ainda os que o escutam no descompasso do que não possui explicação.
Quando as catracas do mundo se fecham...
É porque resta apenas um caminho escuro pela frente.
Os riscos são infinitos.
Em que morrer é apenas uma questão de tempo e perspectiva.
Não são as certezas que alimentam o amor,
São as dúvidas.
Culpados são todos aqueles que fizeram da dúvida uma dívida.
Pagarão a vida toda pelos juros do boleto vencido.
Não, amor não é investimento.
É gasto, no qual não há retorno.
Não há previsões seguras para quem ama,
Pois o amor previsto é o pior dos mundos possíveis!

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Vão

Há um mistério a ser desvendado:
Como "Vão" passou de substantivo a adjetivo,
Sem deixar de ser verbo!
Quando pequeno, na cama, eu dormia de bruços
Porque tinha medo de ver o vão da porta.
Ele irradiava uma luz estranha...
E quando todo mundo dormia,
Eu temia ver passos sombrios pela fresta.
O vão era a suspeita de algo além do natural em minha vida.
Eu ainda não tinha crescido,
E acreditava que existia algo além do sono durante as noites.
Naquela época, o vão habitava entre as paredes,
Era o lugar onde os insetos se escondiam,
E sobretudo, onde a poeira fugia da vassoura de minha mãe.
O vão era só vazio mesmo.
Encurralado por uma porção de coisas.
O mistério era só mistério naquele tempo.
Depois o vão se tornou adjetivo.
Inventaram a vaidade e o mal se fez.
Eu aprendi a dormir de lado,
Com as portas e janelas abertas.
Sem medo de abrir os olhos durante a noite.
Entretanto, continuei sem enxergar nada.
Vãs são as tentativas de quem tenta fugir do mistério...
Vãs são as teorias que buscam explicar a busca...
Vãs as filosofias feito fugas da claridade...
Vão é o tempo feito ponteiro
Que a contragosto, gira sempre na mesma direção
E passa sempre no mesmo lugar.
Paixão é a insanidade que faz vã a razão.
Gasta-se a  vida toda pra se descobrir que "vão" é o infinito que ainda não foi.
"Vão" exige terceira pessoa.
Eternos são os que vão.


domingo, 8 de setembro de 2013

Renunciar a si mesmo

Negar-se a si mesmo é o único caminho para ser.
De tanto existir, cansei de ser eu mesmo...
E é tão difícil ser o mesmo sempre!
A pior tentação não vem dos sussurros alheios,
Vem do "eu" disfarçado de "outros"...
Renunciar a si mesmo é a única vida possível.
Alugo o meu "si mesmo" para quem quiser morar nele...
Mas saibam! Não estarei por lá!
O deus-feito-amor-e-andança negou-se.
Na kénosis, o divino se fez recusa
E desabraçou os que queriam fazer dele um ponto final.
Eu me acuso de não ter me recusado...
Eu me acuso de vestir os pensamentos de roupas e milhares de botões...
Excusar-se não é excluir-se!
A torre já pode ser construída.


quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Coreografias

O mais belo balé possível
Não se faz na ponta dos pés,
Mas com a ponta dos dedos.
A coreografia é uma poesia que anda.
E ela não se faz apenas de passos saltados,
Mas também nos contidos...
Escrever é dançar com os dedos.
É permitir com o que o corpo alcance o que alma deseja.
A mão e o pé são repletos de dedos.
E cada dedo é uma transgressão.
Estúpida e cálida.
Eles avançam um sinal proibido,
Para fora das sandálias
Ou na superfície dos rostos.
Os melhores afagos são coreografados com os indicadores.
Na palavra que desliza o palco de papel
Há uma música que apenas os ouvidos livres alcançam...
Eu tenho coceira entre os dedos...
Porque eles insistem em permanecer separados...
E por isso mesmo, apressados.
Não exija que teu coração seja teu mestre!
Entre pulsar e pensar há um abismo intransponível.
Antes, faça dele teu coreógrafo!
Mistagogia do amor feito dança e doença.