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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Cascas e Recheios

Percorro espaços vazios de um eu que não me cabe.
Afinal, o que é o "eu"?
Uma multidão de metáforas se sobrepondo, mórbidas.
Cascas sobrepostas incessantes e escorregadias.
Não, não pise sobre minhas formas tortas e arredias!
Elas te derrubarão!
Viver é um bicoito recheado.
É um tal de casca e recheio, recheio e casca,
Que só comendo mesmo para saber.
Quando eu era pequeno, tirava as cascas e juntava as duas partes com recheio,
Só pro biscoito ficar mais gordinho.
O Ser magro é intragável.
O amor é a mistura de duas cascas.
Elas se recheiam no grude.
O "eu" só existe nos recheios.
Quando os corpos se queimam na fogueira,
A noite toda se ilumina.
O divino queimou-se amando até o fim.
Ele não precisou de "eu".
Consumindo-se em chamas, incendiou um mundo.
Ele era puro recheio.
Ele engordou o Ser.
Mas, que diabos é esse recheio?
É transgredir. É colar partes distintas de biscoito.
É transformar em gordinho um biscoito magro e triste.
É, enfim, não se contentar em ser só um.
E querer ser todos.
Escorregando em mim, piso um planeta hostil.
O solo arenoso me afunda às vezes.
O oxigênio é escasso.
Vivo de escafandros justapostos ao meu ínitimo exposto.
Sou pavio e lenha ao mesmo tempo.
E saboreio, nas cascas, o que o recheio imprimiu de doce no pouco que ainda me resta.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Uma cantora e seu chapéu

Ela me encantou.
Por miseráveis minutos de espera na porta do metrô
Eu senti o cheiro do som.
E ele era bom.
Sobre um salto quinze e suas botas douradas
A artista de rua soltava a voz e os cabelos em tempestade.
Garoava e eu aguardava amigos para um encontro.
Ela, apaixonada pelo dom de ser livre,
Atraia de todos os esperantes olhares variados.
Debochados, sarcásticos, invejosos.
Sozinha, rodeada pela fome de nada da mutidão correndo ao seu entretenimento
Ela era uma obra de arte.
Estética da existência sobrevoando a esquina da Paulista com a Augusta!
Uma caixinha de som furada,
Batom exagerado, vermelho-maravilha sanguinolento.
A cantora havia devorado o preconceito.
Ele, ela, tanto fazia naquela hora
O artista não precisa de gênero.
Ele se pinta com a cor que o mundo derrama sobre ele.
Nem todos os juízos categóricos a enquadrariam naquele momento.
A luz dos letreiros tristes,
As buzinas dos carros condenados,
O pisar trêmulo dos transeuntes exaustos,
Enfim livres, sexta-feirados como numa abolição.
Nada impedia a cantora de vibrar suas cordas vocais em um manifesto.
E estender seu chapéu.
Não, ela não queria uma moeda.
Ela queria um olhar atento.
Um simples gesto de que sua arte havia encontrado eco na multidão.
Desafinada, rouca, feia até.
E daí? Por uns poucos instantes ela era estupidamente linda!
E a avenida mais rica do país lhe beijara as nádegas em suas esquinas.
Ser artista, hoje, no mundo do lazer futil
É uma afronta solitária.
Em tempos onde o sensível cedeu espaço ao prazeroso-relaxante
O chapéu da cantora terminou o show vazio.
Transpirante, ela tirou as botas se equilibrando como bêbada,
E desceu a Augusta feliz.
Infinitamente feliz.
Sua arte havia reconciliado um universo.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Cinza e Pó

Eu gosto de Quaresma sim e daí?
Para mim não é um período triste.
Para mim, é um momento fecundo.
Pra começar, eu adoro roxo.
É uma cor assim meio que convidativa.
O roxo pega na gente.
Não é a gente que vive a quaresma,
É ela que apaixona a gente.
Ela tem um quê de interior.
Quarenta dias de travessia.
Sim, há um deserto enorme diante de nós.
E ele se chama vida.
Quando eu era criança,
Minha vó (que eu só lembro com uma perna)
Falava que não podia dançar nessa época porque o lobisomem pegava.
Eu fquei sabendo de uma cidadezinha chamada Joanópolis que tem lobisomem.
Mas tem cachoeira também.
E isso já compensa o medo.
Quaresma era tempo de fazer silêncio.
De não bater palma na missa.
E de não comer carne de sexta.
Eu, que detesto cheiro de peixe,
Já vivia minhas penitências só com o cheiro do danado.
Pronto, não precisava nem jejuar mais.
Bastava o cheiro do bicho entrar pelas narinas e meus pecados estavam pagos.
Mas dia interessante mesmo é a quarta de cinzas.
Todo mundo amuadinho, depois das festas da carne.
Cinzas na cabeça do povo.
É interessante ver como o pó dá medo.
O pó é o que para mim mais se aproxima do átomo.
Como eu não consigo enxergar átomo, me contento com pó de cinzas.
Saber que no fim seremos tão minúsculos é estranho.
Mas é bom.
As cinzas da quarta-feira poderiam ser tempero também.
É a matéria toda do universo que poderia ser devorada.
O mais interessante de virar cinza
É poder ser assoprado!
Aspirado!
Pisado!
Virar cimento!
E não reclamar, sobretudo não reclamar.
Não, eu não consigo fazer grandes penitências na quaresma.
Mas as pequenas eu faço.
Resguardo.
Eu rezo toda noite: Sim, Senhor, eu aceito virar cimento!
Aceito não querer nada mais do que ser simplesmente um átomo.
Aceito ter medo de lobisomem.
Aceito ser feliz apenas com cachoeiras.
Aceito me contentar com a vida de interior.
Mesmo longe, perdido no silêncio ensurdecedor da solidão da metrópole.
Hoje eu descobri que converter-se é contentar-se com cinzas.
E pó.
E só!

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Um carnaval

Ela usava máscara.
Ele, estava à procura de um amor.
Ela se escondia sob lantejoulas.
E andava trêmula sobre uma sandália de prata.
Ele tinha uma Sapucaí inteira pela frente.
E tocava o surdo como ninguém.
Ela, que não era cega, não tinha mais tempo.
Seu desfile era, há tempos, uma marcha saudosa.
Quase fúnebre.
Ele era o tempo de uma paradinha de bateria.
E no silêncio eterno das pancadas secas,
Destilava poesia com seu olhar aberto, aberto.
Ela, já tinha sido destaque.
Hoje preferia pisar o chão.
E no solo molhado e cheio de confete da avenida da vida,
Aprendeu que o samba é lição de humildade.
Ele transpirava.
Ela pirava.
Ele tum.
Ela não.
Ele era pura carne.
E era de um vermelho-guache-melado
Ah, era frágil também.
E chorava ouvindo Cartola.
Ela era só suspiro. E soprava pra dentro.
E do seu líquido escorrente de olhos borrados
De uma lágrima oceano se fez.
Pois pra mim foi assim que o eterno se apaixonou pela humanidade.
Meus pais se casaram em um sábado de Carnaval.
Sim, no encontro da lágrima e do suor uma carne sambou.
Hoje eles fizeram 35 anos de carnavais juntos.
Já são eternos e pronto.
Eu fui concebido numa terça-feira gorda.
Nasci fantasiado de útero.
O amor é o encontro de dois passistas.
É cuíca e tamborim.
Apressemo-nos em caber na fantasia,
Pois a Apoteose é certa!
Para mim, viver é um desfile colorido.
Regado a suor e lágrimas.
Cansado, pisado, dançado.
Existir é um samba-enredo!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Um olhar sobre o Firmamento

De volta a Pascal.
Filosofia completa. Genial.
Filosofia grande.
"Cada universo tem seu próprio firmamento!"
Concordo plenamente.
Cada planeta, cada astro, possui um céu próprio.
Não olhamos nunca o mesmo azul sobre nossas cabeças.
O que nos cobre varia de acordo com o lugar que pisamos.
Eu adoro o céu de Brasília. Ele abraça a gente.
Mas onten, vi, aqui mesmo no interior, um céu laranja-lilás no crepúsculo que me emocionou.
Feliz é aquele que consegue se ver abrigado sob a diferença fundante do Todo.
Liberdade é a atitude de quem opta por não se esconder sob o céu.
Mas o cria, traduzindo-o ao semelhante!
Às vezes, os céus também desabam.
E tudo cai em forma de fim.
Quando o firmamento se rompe,
As palavras-julgamentos pingam como estrelas cadentes.
E o solo se banha de novidade.
Batismmo universal trágico.
Chuva fecunda de um firmamento despedaçado.
O mundo é dividido entre os que se escondem no céu e não voam
E aqueles que flutuam.
Uns, passarinho.
Outros, carcarás.
Uns, nuvens.
Outros, fumaça exalante de tochas acesas.
O Amor é a única forma de tocar juntos o mesmo céu.
Ama verdadeiramente quem um dia já contou estrelas ao lado de alguém.
Mas ama infinitamente quem um dia prometeu buscar uma estrela para o outro.
E ama divinamente quem, morrendo, trouxe o céu ao chão.
Se no fim todos viraremos estrelas
Que o firmamento não seja feito de fumaça de fogueiras tristes,
Mas de constelações delirantes,
Ingênuas, Cálidas, Acesas,
E que mesmo quando caiam,
Deixem um rastro a ser contemplado.

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Inflação no corpo

Aprendo nos detalhes.
Hoje, na missa, a garotinha leitora trocou as palavras.
Ao invés de proclamar "inflamação no corpo" (cfe. Lv 13,1) se referindo ao leproso,
Leu "inflação no corpo".
Quem tem inflação no corpo deve ser tratado com misericórdia.
Embora julgado pela hipocrisia,
O inflacionado-inflamado é o inquilino do desejo.
E só quem deseja se salva.
Concordo plenamente.
De acordo com meus conhecimentos macroeconômicos,
Inflação é quando há excesso de consumo produzido por excesso monetário.
É quando tudo fica mais caro.
O ser humano com a vontade irremediável em se expandir
Não se cabe. Não se convence.
O corpo é o lugar da expansão.
É o indicador existencial-monetário do Ser.
Viver é aumentar-se.
Relações, tamanho, peso, conhecimento.
Inflacionamos o tempo todo.
Percentualmente exagerados,
Crescemos em todas as direções desmesuradamente.
Não se exclui uma vida inflacionada.
O desejo humano em se fazer Todo não pode se reduzir a um julgamento.
Jesus tocou na pele manchada pelo julgamento humano.
Ele purificou a condenação dos que viram no leproso um déficit.
E o amor só se revela no déficit.
Na mesa ele fez da inflação humana um sacramento.
No corpo elevado no altar
Todos os corpos de mundo se unem em um desejo circular redentor.
A natureza toda se integra numa ânsia absoluta.
E espera que a inflação universal não a endivide.
Misericórdia é a capacidade humana de transformar débito em crédito.
E amor é o toque no corpo inflacionado de olhares redutores.
Hoje minha pele manchada pelas teorias frias
Encontrou-se no abraço-comunhão do Senhor-tocante
Desejar o outro em sua pequenez...
E fazer de cada olhar fragilizado
Um banquete de sentido.
E um superávit.
Estou inebriado de amor pelo ser humano.
E inflacionado... inflacionado...
Corpo. Sangue. Abraço. Expansão.
Toques do infinito que se vislumbra em pronúncias erradas.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

O cachorro sob a mesa

Marcos 7, 24-30.
Hoje uma migalha caiu e alimentou o meu universo.
O Mestre decidiu sentar-se à mesa.
Ele devorou a hipocrisia em Tiro e Sidônia.
E pisou fronteiras.
Aos seus pés uma humanidade inteira em forma canina
Aguardava em silêncio expectante as sobras.
A mulher pagã batizou-se na espera.
Ela soube fazer milagre com uma partícula de atenção.
Sob a mesa dos saciados,
Um coração insaciável!
O desejo também late em forma de pedido.
Ela queria mastigar um Amor novo.
Ela tinha um vulcão dentro de si.
E precisava expelir lavas incandescentes.
Eu também, às vezes, sinto-me assentado sobre um vulcão.
Há em mim uma erupção entupida.
Meu pai não.
Na mesa de casa, na hora do almoço,
Até os cachorros se assentam.
O Pit é um pinscher atrevido.
Ninguém o chama.
Mas ele entra. Rosna. E espera.
Ele não late, mas tem dentes.
O Pit é virtuoso. Ele tem esperança.
Ele saiu de cima da tampa do vulcão.
Com seu olhar transcendente,
Ele suspira a meus pais uma migalha,
Que, nesse caso, não é de pão, mas de carne.
Minha mãe proíbe! Ele é cão, que viva de ração!
Mas meu pai, divino-humano em sua misericórdia,
Ingênua-propositalmente, como criança,
Derruba-joga-oferta muito mais do que um pedaço ao chão.
Prato-feito!
E o bichinho se sacia.
O Pit faz milagre com um osso sequer.
O que eu mais gosto no Pit é que ele salta atrás da migalha que cai.
E pega o pedaço no ar!
É uma espera pulante do Ser se manifestando.
Há um mim uma vontade maluca de saltar.
Sinto-me abrigado sob mesas fartas.
Mas vocacionado a fronteiras.
Eu, que estou abundado sobre um vulcão,
Desejo o divino que se faz migalha.
Que vive escondido nos pulos inebriados de quem espera.
Só tem direito de se saciar do deus-feito-pão no altar,
Áquele que o enxergou nos que estão sob a mesa
E que saltam.
Jesus, que percorreu fronteiras e incandesceu em lavas o universo,
Não apenas olhou os cachorrinhos famintos...
Ele se fez migalha.
O deus-amigalhado é o crucificado.
O eterno fragmentado em minúsculos pedaços de existência
Revela o desejo humano por banquetes.
Ainda que de migalhas-milagres,
Escondidas sob mesas fartas.
Ama verdadeiramente quem faz da fome um salto!