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quinta-feira, 26 de abril de 2012

Carbono

Não entendo absolutamente nada de química. Não sou bom com cálculos. E para mim, a química é a ciência do cálculo. Somando os elementos temos tal coisa, Tirando a coisa do elemento, resta outra coisa-elemento e por aí vai. Eu faltava nas aulas. Desculpa esfarrapada de quem escolheu as letras. Porém, há algo que me fascina na química, Na verdade, é um elemento. O Carbono! Pai de todas as coisas. Dele, todo o vivo emana E para ele retorna. O carbono é o fim de todas as coisas. Em cada parte da matéria vivente, Lá ele ecoa, impávido, único. Saber-se um elemento constituinte do Tudo deve ser muito triste para o Carbono. Penetrar todos os seres, E considerar-se um útero absoluto deve ser cruel. Tragédia infeliz estar em tudo e não ter identidade em nada. O carbono em nós nos espera. E, devagarinho, ele vai nos consumindo, E nos levando aos pedaços dele mesmo presentes no Outro. Sim, o beijo é o encontro úmido de dois carbonos. Pior: mesmo e indissolúvel! A unidade do Ser me assusta. Tenho medo de não estar me transformando. E reduzir meu punhado carbônico a uma desintegração coletiva. O carbono é feliz porque se realiza desintegrando-se. Eu vejo o carbono quando tudo pega fogo. Da fumaça (preconceituosamente chamada de tóxica) que sobe Ao pó preto miúdo que já nasce apagado. A vida é o que se estende entre a fumaça e o pó. Onde apenas em brasas o Todo reside.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Quadro pendurado

Há dias em que eu acordo com uma vontade infinita de não salvar o mundo. Corrermos na direção do precipício com os olhos vendados (Pascal) Pretensão absurda. Não, eu não sou niilista. Apenas me recuso a inserir a minha mísera vida numa lógica de sentido. O trágico não precisa de sentido. Precisa de instante. Não ter metas não significa não saber pra onde se vai. O tempo que exige evolução não nos entrega os "porquês". Os objetivos necessitam de sujeitos calados. "Alcancem-me ou os devorarei!" Planto rosas apenas para que o perfume seja uma saudade. No fenecer de cada uma delas, eu já me realizo. Morrendo, o Todo mergulhou no Ridículo. E o Deus tornou eterno o acabar humano. A vida é um museu de arte. Ou optamos por passar correndo na direção da porta do fim, E apenas tocamos o universo com o rabo d'olho. Nessa opção, o fim, ainda que atraente, Serve unicamente para uma profissão triste de fé: vi tudo, alcancei meu céu! Há outra opção. Que não dá a mínima pra porta de saída. E que ao invés de olhar rápido para os quadros da parede, Se transforma em um deles E decide habitar penduradamente o caos. A salvação não depende de mim. Ela veio por um homem pendurado. Pendurando-nos, atraímos o infinito ao Ser. Convergência do absurdo a um grito de desespero.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Líquido escorrente

Senhor,
Tu me atraíste para o teu leito.
E cobriste-me com a bandeira do amor.
Levaste-me para tua adega,
Abrigaste-me ao sabor dos vinhos mais puros.
E embriagaste-me de amor pelo Vivo-do-universo.
Eu te bebi ó Deus.
E me fiz ministro da Paixão Universal.
Para que, apaixonando-me, sempre,
Eu possa tocar suas feridas com uma não-palavra
Efusiva. Ardente. Frágil.
No teu altar eu debruço vidas em forma de pão.
No teu cálice eu misturo o Ser que de tanto amar se diviniza.
Eu fui ordenado por todas as mãos do mundo.
E elas se debruçaram sobre mim entrelaçadas.
A Igreja, para mim, sempre será maior do que um templo,
Com suas doutrinas e encíclicas discorrentes,
Que apesar de boas e necessárias,
Não me levam além da página dois.
Tu me chamaste pelo olhar de Alziras, de Pessoa, de Clarices, de Quixotes,
Que estavam todos lá por onde passei
Santa Rita, São Judas Tadeu, Santa Edwiges, Montalvão, Tupã, Justinópolis, Imac. Coração de Maria e Santo Antônio, Santa Teresinha, Brasil Novo, Humberto Salvador (onde fui mais feliz).
Ser padre, para mim, é o modo como encontrei de misturar-me ao mundo
E a fazer dele o meu sacrário!
Eu já tentei fugir,
Mas não consigo,
Tu me alcanças sempre e me vences na corrida.
Quem me chamou foi uma Pessoa!
O Alguém me conduziu para além do Algo
E me fez penetrar o Todo.
Conto-lhes agora um segredo!
Uma confissão. Façam dela o que quiserem.
Há três anos atrás,
Quando prostrado ao chão eu era ordenado,
E a ladainha subia aos céus,
Escondidinho, sem ninguém perceber,
Eu beijei o chão pisado onde eu estava.
E disse miudinho ao Deus-Corpo a quem me consagrava:
Todo teu! Todo em ti! Em tudo, tu!
Naquele instante, todos os pés me calçaram,
Todos os corpos se fundiram em um,
Todos os amantes se beijaram,
Todas as feridas se abriram
E jorraram em mim um líquido quente,
Venoso.
E eu me senti como um leito.
Onde Tu, somente Tu
Me fecundaste com gemidos incessantes.
Eu quero Tudo.
E quero provar do teu líquido escorrente, ó Deus,
Para repartir-te em fragmentos pequenos aos meus irmãos.
O ab-soluto é o espaço da solidão.
Eu te consagro nas migalhas da vida.
Meu ministério eu estabeleço nas esquinas das mesas devoradas,
Lá, toda sobra se transforma em banquete!
Equilibro-te sobre o cano de uma bicicleta,
E ainda que ofegante,
Pedalo, pedalo, pedalo...

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Pra que tudo não vire um conceito

É bem assim:
Tudo começa sem razão.
Um olhar, um pisão no pé, um cheiro.
Depois passa-se à mesa.
A comida é uma forma de beijo.
E pratos sujos que não se lavam sós.
E bares sujos que não existem sós.
E risos,e risos, e risos...
Assim são as relações humanas.
Amizades, paixões, amores.
Não há lógica silogística no encontro fundante de dois seres.
Que, quando se lançam, não cabem na categoria "ser".
O ex-tenso não contém o in-tenso (me perdoe Hegel)
É na tensão dos braços roçantes que a vida flui.
Quando duas pessoas querem ficar perto uma da outra
Não importa o lugar, o assunto e a cor do cabelo.
Importa o "quem".
Só quem já celebrou junto uma noite com alguém
E viu o Sol nascendo deitado em uma grama
Sabe o quanto é bom ser leve.
E o quanto o afeto não pode ser mendigado em esquinas frias.
Gostar de alguém não pode ser uma definição semântica.
Quando a amizade vira uma dependência, necessita explicação.
Quando o namoro vira ciúme, exige um hábito-assassino.
Quando o casamento se resume a um papel assinado, ele se limita a contas divididas.
A verdade responsabilidade da vida está na capacidade de tornar o fardo leve.
Existir é um peso a ser carregado junto.
O suor da busca não tem nome.
Não transforme nunca suas relações em um conceito!
Não reduza o in-tenso a uma ex-tensão muda.
Explicar é um suicídio.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A Passagem das Horas - Parte II

Segue a continuação da mais linda poesia de Fernando Pessoa.

"Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.
Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma ideia abstracta,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também.
* * *
Multipliquei-me para me sentir.
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me entreguei-me,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente".

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O canto do pássaro na gaiola

Rubem Alves: "o mais triste no passarinho engaiolado é que ele ainda cante"
Realidade trágica da vida que voa.
O alpiste nosso de cada dia nos insiste em fazer cantar.
Há nas mãos que oferecem ração uma prece rogante por um som.
E que esse som venha em forma piados melódicos!
Alimentar também é uma coação.
Voar não é necessário, cantar é!
De dentro do peito amarelo uma treva ecoa.
E sobe miúda, lenta, aterrorizante.
O pássaro assoviante é o Ser em forma de tripa exposta.
A liberdade está na música e não nas asas.
O bicho-sem-asas-mas-com-pensamento não existe sem grades.
Ser livre não é para os mudos.
O necessário impera.
O idealismo bate asas e não faz vento.
Viver é um olhar pelas frestas da gaiola.
E fazer de uma semente sobre a cuia
Um banquete cru e quente.
O passarinho na gaiola não precisa de árvores frondosas.
Ele as inventa em poleiros frágeis.
O voo contido do bichinho enjaulado
Me faz lembrar o globo da morte do circo que ia na minha cidade.
O motoqueiro, que de tanto girar não caia,
Fazia da grade seu equilíbrio.
O limite também é um sustento.
O passarinho se equilibra no seu piado.
E tem pena do que estão para além da gaiola.
Encarcerados no céu azul das possibilidades
Eles já não cantam.
De tanto bater asas com o bico volteado pra frente
Já não sabem pousar.
E fizeram da melodia das grades um eco esquecido.
A asa do pássaro é seu bico.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Relacionamento Sério

O facebook é engraçado.
Acho interessante quando as pessoas alteram seus status de relacionamento.
Fulano passou de "solteiro" para um "relacionamento sério"
É um passo grande.
Fico me perguntando, o que é "sério"?
Interessante a equação: seriedade = estabilidade = namoro = casamento = felicidade.
Os melhores casais que conheço não são sérios.
Meu Deus, minha família não é séria! Ela é engraçada!
O engraçado permanece!
O sério é chato. E enjoa.
Sério lembra série!
Etiquetas, códigos de barra, números de chassis.
onde o sério se instaura a vida se limita.
Um relacionamento para perdurar não pode ser sério.
Ele precisa ser responsável.
A fidelidade não é séria.
A fidelidade exige o riso e a leveza.
O compromisso não se dá numa série opaca.
O amor tem um quê de cômico.
Quem ama ri à toa.
Quem odeia fecha a a cara.
A família é o lugar onde o engraçado vira sacramento.
Onde a mesa não é lugar de olhares acusadores,
Mas de piadas velhas e repetidas, sempre atuais.
Minha família quando se junta é pura falta de seriedade.
Na insegurança leve dos relacionamentos cambaleantes também pode haver compromisso.
O tempo coloca peso na vida.
Eu, quando for Papa, decretarei como gesto sacramental o "rir juntos"!
Saber rir das tragédias cotidianas é um santo remédio.
O riso bobo de um casal
É um beijo na aliança pela manhã!
Indulgência plenária aos não-sérios!
Aos que sabem que a vida está para além dos rótulos.
O casamento só se realiza na liberdade.
Os inseguros criam regras.
Os livres as transcendem.
E riem, sobretudo riem.

sábado, 7 de abril de 2012

Uma pedra, um túmulo e um Corpo

Ela beijava a boca do túmulo.
Tinha a doce ilusão de que seria eterna.
Enorme, ela tinha nascido pra ser movida.
Tampava um universo com sua grandeza impávida.
A pedra era toda a imobilidade do mundo em forma redonda.
E, mesmo sendo redonda, preferia não rolar.
A pedra só olhava pra fora.
Não descobrira ainda um interior infinito que ela protegia.
De lá pra cá uma espera.
De cá pra lá uma proteção.
Sim, a enorme pedra guardava um tesouro.
Mas não tinha coragem de olhá-lo.
Entre os dois havia um véu.
Há pedras que em si já são túmulos.
Não existe sepulcro maior do que a imobilidade.
Satisfação infeliz de simplesmente estar.
Não, a pedra não precisava de guardas.
Eles eram inúteis diante da sua paquidermica indolência.
O peso de toda uma humanidade redonda-imóvel estava ali, mudo.
De repente, o túmulo se fez grito.
E um corpo sozinho moveu o passado-rocha do universo.
Todas as proteções caíram ao chão.
E a ressurreição também foi desintegração da matéria inerte.
O mundo é dividido entre os que se assentam em pedras
E os que as rolam ladeira abaixo.
Eu creio na Igreja que não coloca pedras.
Mas as empurra com os braços do Senhor.
Que não impede a humanidade de olhar o Corpo do Deus.
Mas que é puro Corpo, apaixonado, pulsante e absurdamente vivo!
A Páscoa é um empurrão!
O corpo pendente da sexta
É o corpo empurrante do domingo.
Uma Feliz Páscoa a todos que viram seus sonhos
Empedernidos, emudecidos, protegidos por guardas
Mas que ao simples toque de um corpo-vivo
Desintegram pela esperança o que o medo transforma em rocha!
E que sejamos muito mais do que pedras tristes de um túmulo vazio!