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quinta-feira, 29 de março de 2012

Abra-ã-o

Abrão tinha a tenda.
Abraão era um firmamento.
Entre eles um "a".
Uma letra que significava um êxodo.
Uma multidão de estrelas convidou Abrão a cometer uma fuga.
Ele não cabia na barraca.
Seus pés escapavam.
E ficavam ao sereno.
Aliança é tudo aquilo que nos arranca da segurança ilusória de tendas frágeis.
E divinos são os olhares que contam os pontos brilhantes do universo em noites escuras.
Estrela é tudo aquilo que, de tanto piscar, apagou.
Mas, ainda que morta, enterrada nos cafundós do universo,
Ela resiste há anos-luz nos olhares daqueles que vivem em fuga.
Abraão é todo fuga.
É o humano apaixonado pela absurda incompreensão da vida.
Na Aliança, o infinito não promete um teto,
Promete um escuro-estrelado apavorante!
Promete gente, posteridade em forma de múltiplo.
Ali, a humanidade descobriu que as estrelas também falam!
O apagado ouviu uma luz imensa e saiu.
Em Abraão, o deus-dos-que-vivem-em-fuga declarou-se ao homem-todo-fuginte:
"Te quiero, te deseo! Casa comigo e faremos um puxadinho pra nós dois!"
O amor é uma fuga.
Entre a certeza da tenda fria
E o terror do céu estrelado,
Um grito em forma de "a" foi pronunciado.
Abraão já nasceu com um anel no dedo.
Noivado e parto, tudo junto!
Dizem que naquela noite estrelada
Ele foi visto nu, correndo pelo deserto da Caldéia.
Transgredido e embriagado,
Mas absurdamente livre
Por ter bebido o universo todo em um único trago.

segunda-feira, 26 de março de 2012

A passagem das horas (parte I)

Pessoa me afeta.
Desculpem-me, mas com ele rezo.
Transcrevo aqui trechos de uma de suas poesias mais sublimes.
Ela tem me acompanhado a alguns anos.
E a cada vez que releio,
Uno-me ao altar do Universo,
E sinto-me inebriado pelo Deus.
***

Todos os amantes beijaram-se na minha'alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.
Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas as emoções,
Paragaram-me bebidas todos os acasos das sensações
Troquei olhares com todos os motivos do agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstracta das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida.
Obter tudo por suficiência divina
As vésperas, os consentimentos, os avisos,
As coisas belas da vida
O talento, a virtude,a impunidade,
A tendência para acompanhar os outros a casa,
A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar já para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.
Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois deem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.
(Álvaro de Campos)
(Continua)

sábado, 24 de março de 2012

O pecado do escuro

- Padre, eu tenho medo do escuro, é pecado?
- Imagina, mina filha, Deus está conosco, não temos porque temer!
- Mas padre, no escuro eu não sei onde piso, daí eu acordo minha irmã pra ir comigo no banheiro de noite.
- Mas confie em Jesus, ele te ajudará a vencer todo medo!
- E ele pisa no escuro comigo?
...
As crianças me revelam o absurdo.
Elas me acham, me iluminam.
Eu, que só funciono pisando no escuro,
Aprendo com elas a não temê-lo.
Basta chamar a irmã no meio da noite.
E não é pecado.
Pecado é fazer xixi na cama,
E morrer de medo de qualquer penico.
Pecado é esconder-se sob luzes artificiais,
E proteger-se com a claridade de ideias apagadas.
De fato, pisar no escuro é seguir um caminho repleto de dúvidas,
Onde a queda pode estar em qualquer passo falso.
Há uma multidão de tropeços nos esperando.
Pisar no escuro é não ver o chão.
Ou, simplesmente, concordar que ele não existe.
Pisar no escuro é tatear por vias sinuosas.
Eu, que já nasci tateando,
Só consigo enxergar o divino nas sombras.
Ele me atrai.
Me faz sair da cama quente.
Me aperta a bexiga.
Mas confesso que tenho medo.
E muito!
O pecado não está no escuro.
Está nos passos contidos.
Nas camas.
Nos penicos.
Ando a pisar por trilhas tortuosas.
Onde meus passos se tornaram dança.
E o escuro, um convite.

domingo, 18 de março de 2012

E preservar e abrir espaço

Ontem assisti pela segunda vez a montagem de 7 gatinhos, de Nelson Rodrigues.
Esse texto me fascina.
Nelson é genial.
Ele é obsceno, ele nos maltrata.
Lança aos nossos olhos o que jogamos sob o tapete.
O teatro, que das mentiras humanas é a mais verdadeira,
Não existiria no Brasil sem Nelson Rodrigues.
Saí com uma sensação absurda de ofensa.
Senti-me esbofeteado pela verdade não-dita do Ser.
E gostei.
A arte é uma forma de ofensa.
Há uma gata parindo sempre pedindo pra ser assassinada em cada história humana.
O nojo e o ódio consomem o silêncio e se revelam amiúdes em cada fragmento.
7 gatinhos é um exercício de se suportar.
Minha penitência na quaresma é não virar o rosto aos bofetões que a vida dá.
É um jejum tremendo não devorar o tempo e antecipar fatos.
Não há maior caridade do que assentir-se em cada minúscula parte regorgitante de si.
E preservar e abrir espaço e preservar e abrir espaço...

sábado, 17 de março de 2012

Mão dupla

Ir e vir.
O trânsito em São Paulo é um caos.
É muito carro indo ao mesmo tempo.
Dirigimos aos soquinhos.
Essa semana eu tive uma ideia.
Imbecil, mas tive.
Por que ao invés de existirem ruas tão estreitas, de mão dupla,
Não fazem uma via única, onde todos os carros só vão?
Resposta óbvia que eu já sabia:
E como eles voltariam?
A mão dupla é uma necessidade do trânsito.
Dá um alívio danado ver que o mesmo carrinho que sofreu pra ir
Uma hora volta.
Mão dupla é o grande sentido das relações humanas.
O fluxo deve percorrer os dois lados do caminho.
Seja na amizade, no casamento, no namoro, ou numa relação profissional,
Quando não há espaço para o retorno do outro,
Tudo se engarrafa numa via imóvel.
Apesar das dificuldades das idas por ruas estreitas,
O caminho árduo que cede espaço para o outro éo que dá equilíbrio para o Ser.
Não, não te arrisque a construir viadutos.
Quando o diferente anda por cima, não há troca de olhares.
Há sobreposição.
A espera angustiante pelo outro passante é o exercício da liberdade.
Na falta, o silêncio restaurador.
No vazio, a busca.
Tristes são as estradas velozes que aceleram o percurso,
Mas negam o caminho inverso.
O amor deve sempre ser uma via de mão dupla.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Comunicação

A comunicação é a estrada da liberdade.
Há no interior de cada ser-falando uma palavra sempre a ser dita.
Há uma reserva escondida,
Temperada, madeirada como vinho fino.
Não se pode abrir a rolha antes do tempo.
O sabor mais profundo de si não deve ser servido em qualquer mesa.
Não, comunicar-se não é falar-se.
É ser ouvido e fazer-se dito.
Comunica-se perfeitamente aquele que não precisa de palavras.
Expressa-se melhor quem percorre o rio lento do silêncio,
Sem ceder às margens devoradoras emudecidas.
Não deságue em qualquer represa!
Não afogue o universo em frases líquidas.
A melhor palavra é a que não foi escrita.
Roçou o céu da boca e fez cócegas.
Mas não saiu.
E se debruçou dormente sob a língua.
Às vezes, o discurso é o esconderijo do não-ser.
O Deus-para-além-das-gramáticas foi Comunicante antes de ser Comunicado.
Ele, que era Verbo, infelizmente foi reduzido a Pronunciamento.
Perdeu a ação na boca-falante dos emudecidos pelo tempo.
O Verbo é puro movimento.
É a Palavra-sendo. Percorrendo a mudez universal.
Quando criança eu detestava ditado.
Não suportava que cada palavra fosse ditada separadamente.
A - bola - é - azul
O - menino - chutou - a - bola
Ele - fez - gol - com - a - bola - azul
Eu não concordo que as palavras vivam separadas.
Sozinhas, elas são tristes.
Como Menino sem bola azul,
Como bola azul sem gol.
Resguardar-se não significa calar-se!
Significa, antes, comunicar-se.
E penetrar o planeta-azul-bola por detrás de verbetes mórbidos.
Nunca a comunicação é tão profunda como quando não se diz nada.
A Palavra salvou o mundo.
Mas foi o silêncio quem salvou a Palavra do mundo.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Vinho da Vinha na Veia

O sentido não é substantivo.
O sentido é verbo.
A vinha é verbo.
Ela é o vinho se tornando.
Só pode haver sentido (substantivo)
Quando ele antes tiver sido verbo.
Assim, na dinâmica da vinha-vida,
Tudo é verbo.
Adubo é verbo.
Semente é verbo.
Rama é verbo.
Podas. Flores. Frutos. Caldos.
Puor si muove.
Cerca não. Cerca é triste.
A uva é o ícone da espera.
Quietinha, dependurada em cachos,
Ela engorda, lenta, soberana.
Há em toda uva uma expectativa escatológica.
A uva é um ser eclesial.
Ela só se preenche de suco em comunidade.
Uva sozinha é biroca.
Uva juntinha é Igreja.
Quando chega a colheita
E os cachos se entregam trágicos às mãos do ceifeiro,
As uvas viram procissão.
Sim, o sentido da uva é o vinho.
Ela já nasce embriagada.
Ser pisado é a atitude daqueles que não cabem na vinha.
Eles saltam. E porque saltam, transcendem.
Se um dia me esmagarem para extrair o meu caldo,
Que seja com dança!
Que seja com ritmo!
Desejo ser pisado ouvindo Carmen, de Bizet.
Prometo dar o suco todo.
Feliz é aquele que seguindo o exemplo do Deus
Não reclama dos pés que o esmagam,
Mas sabe se escorrer em um líquido cristalino, doce.
Acabar é ser cachoeira.
O Deus-das-uvas-pisadas já nasceu bebida.
De tanto sentir o vinho correndo entre as veias,
Embriagou o universo de sentido.
Há um banquete no interior de cada uva.
Há cálices sedentos à espera de brindes.
Ansiosos como leitos nupciais.
A vida é o que se espreme entre a vinha e o cálice.
Tomai todos e bebei!

segunda-feira, 5 de março de 2012

Misturar

Eu gosto de feijoada porque é misturada.
De repente, assim, sem mais nem menos,
E sem pedir permissão,
Paio e couve se tocam.
E a laranja bóia plena no feijão preto acoentrado.
A mistura é o tempero da vida.
Deus, que criou o universo separando,
Ensinou o ser humano a misturar.
O puro é chato.
A feijoada é saborosa.
O Brasil é bom porque aqui não há pureza.
A miscigenação abençoou-nos por gerações infinitas
E fez desse povo S.R.D. (ou vira-lata, para os rodrigueanos)
Um pedacinho da eternidade.
Aqui é um tal de pé, rabo, orelha e costelinha
Abraçando farofa pra tudo que é lado.
O amor, pra ser amor, tem que ter química.
E química é mistura.
A química nunca é pura.
O amor também não.
Atenção, falo de pureza aqui no sentido figurado,
De não-misturabilidade dos seres.
Explico-me antes que os pseudo-puros acendam fogueiras.
O amor tem um quê de feijoada.
Ele une pessoas.
Ele é feito de samba.
Ele é absurdamente saboroso.
E dá azia às vezes.
Não, nunca coma uma feijoada sozinho.
Tal como o amor, ela só alimenta quando dividida.
Comer feijoada é coisa que exige ocasião.
Exige misturar-se em um caldo grosso, inquieto,
Gorduroso e extremamente indigesto.
Ai daqueles que nunca saborearam uma feijoada num sábado à tarde!
Infeliz aquele que por medo do sabor, preferiu viver de coisa insossa.
Minha vó diz que comida sem sal é comida sonsa.
Eu prefiro o termo "sonsa" à "insossa".
Faz mais sentido.
O Deus-misturado-em forma-de-gente-e-samba,
Que trate de preparar uma feijoada pra quando chegarmos ao céu!
"Devemos ir também aos gentios"
Misturar-se ao caldeirão fervente do universo
É ser tempero de sentido, é ser sal.
Num mundo enfastiado de gente "sonsa-pura",
Misturar é a verdadeira obediência.
E comer feijoada é uma atitude de liberdade.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Fossa e Esgoto

Diferença fundamental sintetizada em canos.
A fossa armazena.
O esgoto canaliza.
A fossa é soterrada.
O esgoto vai pro rio.
A fossa acumula.
O esgoto libera.
A fossa é substantivo.
Esgoto é verbo passivado.
Fossa também pode ser adjetivo.
De alguém que de tanto levar defecções alheias,
Acumulou em si o dejeto do mundo.
Escrevo defecções porque escrever cocô é muito delicado.
E escrever merda é feio.
O esgoto, que vem do verbo esgotar,
É mais limpinho, é fino, dependendo do duto.
Alguém esgotado, apesar de um dia também sentir o dejeto do mundo correndo em suas veias,
Sabe que nada ficará nele.
Ou com ele.
Tudo fluirá para as correntezas baixas onde deságuam o Ser.
A partir das fossas, muito já se criou.
Até música sertaneja.
O acúmulo gera inspiração.
Já dizia o grande Nelson Rodrigues:
Não se assoa a dor mais profunda.
O esgoto, que não sabe segurar nada em si,
Vive se esvaziando.
Os canos que o compõem são escondidos.
Vivem atrás das paredes.
E vivem levando o incômodo para longe de nossos olhos.
Não há poesia no esgoto.
Sim, a arte também é uma espécie de fossa.
O artista é um acúmulo lento.
Escondido soterrado onde ninguém vê.
O artista suporta calado.
Ele não se esvazia canalizando o asco para rios.
Ele guarda.
Esgotar é desistir.
É uma fuga.
A fossa é real.
O esgoto é fingimento.
Esgoto + superfície = doença.
A fossa fossiliza o não-dito,
Aquilo que não se canaliza em palavras.
Fossa é imagem.
Esgoto é letra.
Triste é uma humanidade que não admite suas fossas.
E se esconde sob dutos invisíveis de hipocrisia.
Infeliz é aquele que joga tudo no rio mais próximo.
E anseia por um infinito absurdo em forma de oceano longínquo.
A fossa, no seu escondimento, sepultada,
Contenta-se em apenas estar alí, acumulada, enorme.
E se realiza sabendo que um dia será cheia.
Plena.
Ainda que esvaziados,
Os buracos deixados pelas fossas são eternos.
No oco mal-cheiroso do mundo
O Ser penetra e faz morada.