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sábado, 30 de julho de 2011

O menino e os pães

Eu vi um menino vendendo pães.
Ele tinha um cesto a tiracolo,
E um pé vestido de chinelos.
No seu cesto, dois pães não vendidos.
Meu primeiro trabalho foi vender pães na rua.
Minha mãe os assava no nosso forno vermelho.
E eu os oferecia, pelas ruas, à tarde.
Foi minha primeira missa.
Vender pães, para mim, era salvar o universo.
Eu tinha uma monareta cor de vinho.
Um cesto de palha.
E um boné azul.
O cesto, por algumas horas, se transformava num presépio.
Onde o Menino-Jesus era um pão fumegante.
E a multidão se saciava de Deus-com-manteiga.
O trabalho é a missa da humanidade.
Nele se celebra a liturgia da existência.
Hoje, sinto falta do meu cesto-presépio.
Falta pão em meu pedalar.
Senhor, dai-me Vós mesmo de comer.

domingo, 24 de julho de 2011

Tesouro

Cada pessoa tem um campo entesourado dentro de si.
Descobri-lo é a tarefa fundamental da vida.
Escavar bem,
Limpar o terreno,
Protegê-lo dos inimigos que podem tomá-lo.
É preciso cuidar a cada dia do tesouro do coração.
Não, nunca entregues o teu coração a quem não sabe cuidar.
Nunca exponha teu coração em um mastro.
Nunca faça do teu coração um refúgio de tesouros alheios.
O brilho do nosso tesouro,
Vem do silêncio com que sabemos tratá-lo.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Madalena

Ela ainda procurava um corpo.
Com as sandálias salto quinze nas mãos,
E o perfume se destilando pelos poros,
Ela voltava pra casa, ungida pelo amor de corpos alheios.
Pelas manhãs de domingo,
A Augusta se tornava uma procissão de vidas santificadas.
Sim, ela amava as manhãs frias de domingo,
Quando o Sol lhe beijava as faces borradas,
Pela maquiagem-tatuagem passada.
O centro da cidade velha e suja era seu palácio.

Mas, naquela manhã, tudo foi diferente.
Ao passar pela Igreja cinzenta, cheia de velhas,
Escutou uma voz que lhe chamara pelo nome.
Sim, ela tinha um nome.
Onde a verdadeira guerra existia.
"Nome, quero teu corpo!"
Dizia a voz que lhe beijava os ouvidos.
Passo-a-passo, ela adentrou pela Igreja-túmulo.
As velhas se comunicavam num falatório triste e oco.
Um sino deu início ao matrimônio.
E corpo-pão comungou do corpo-perfume.
O Deus dos homens e das putas,
Quis habitar nos corpos ungidos pelo desejo.
Ela amou.
Ele foi amado.
E na comunhão perfeita entre o divino e o humano,
Ela sorriu quando o Deus-pão chorou dizendo:
Roubaram-me o corpo e não sei onde o colocaram!
Nesse momento, as velhas acendiam velas para exorcizar o ciúme.
Ela assentou-se com Ele aos pés do altar,
Descansou as sandálias sobre o piso frio.
E ofereceu-se, miúda, para abrigar em seu ventre o universo.
Por um instante, os olhos do Deus-pão arregalaram.
O corpo daquele Nome era um êxodo!
E o divino penetrou-lhe os músculos exaustos,
A boca ferida pela mordida devoradora da noite,
Os seios acariciados pela fome,
O íntimo seco.
E daquele instante em diante,
A salvação habitou o corpo para sempre.
Um outro sino anunciou ao mundo o fim da celebração.
Ide missa est

Ao sair da Igreja e perambular saciada pelas avenidas sonolentas,
Seu corpo fecundado abençoava o mundo.
E gatos, garis, bêbados e flores
Eram os acordes de um anúncio universal.
Quando entrou em seu apartamento-templo,
Seu corpo que havia sido uma hóstia na noite dos famintos,
Agora repousava sereno sobre os lençois amassados.
Sua vida, que antes fora um altar doce,
Onde os peregrinos do desejo se ofertavam.
Se transformara em uma missa.
Suas sandálias, enfim desacansaram...
E os perfumes passados acolhiam aquele corpo.
Que, por um fragmento de segundo,
Havia se tornado infinito.

domingo, 17 de julho de 2011

joio

A diferença entre o joio e o trigo é olhar do agricultor.
Também o joio é um ser vivente.
Sobrevivente em meio ao trigo.
Também o trigo se alimenta de joio.
Aliás, o joio é o tempero do trigo.
Hoje vi um pai ensinando uma menina a andar de bicicleta.
Ela caiu. Ele deixou. Ela chorou.
Cair também é trigo.
Chorar é trigo e joio.
Pedalar é regar o universo.
E enxertar o mundo de continuidade.
Uma sociedade que arranca joios é estéril.
É dourada demais para virar pão.
O olhar do pai pedala a menina.
Eu, que sou mais joio que trigo,
Pedalo caindo no choro triste do Ser.
E rego o cosmos com minhas quedas.
O joio queima em si o orgulho do trigo.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Êx-odos

Deus é êxodo.
Ele é sempre saída de si em direção a nós.
Para isso, ele sai de seu caminho.
Ex-odos.
Ele toma o nosso caminho.

Cuidado Deus, meu caminho é muito torto!
Vamos de bicicleta, você se equilibra no quadro.
Há uma ribanceira a cada esquina.

Em nós, Deus descobriu uma estrada aberta.
Nas trilhas de nosso corpo um mapa para Ele.
Somos uma Palavra que veio e que vai.
O ser humano é um êxodo sem odos.
O caminho ficou pelo caminho.

Moisés um dia atravessou o mar.
E exodou o povo.
O êxodo também é exílio.
É deserto e maná ao mesmo tempo.
O outro é a terra prometida.
Tateamos cegos por sendas mudas.
Pro nobis Ex nobis

terça-feira, 12 de julho de 2011

O amor dos gregos

Leio Foucault.
O uso dos prazeres.
Uma história da sexualidade.
Geralmente não posto aqui meus estudos de doutorado.
Acho coisa fria.
E meu blog é um lugar para se fugir da frieza da vida.
Mas essa leitura é cálida.

Os gregos tinham uma visão muito interessante de amor.
O conflito como regra.
Em todas as relações, guerra.
Dominar e ser dominado eram os critérios morais.
O julgamento se estabelecia sobre aquele que se subordinava ao outro.
Ser conduzido por alguém era princípio de desonra.
Conduzir era a atitude de todos.
Interessante essa concepção bélica do amor.
Uma batalha incessante por afundar os navios do outro.
Às vezes, armistícios são promulgados.
Mas o desejo insaciável continua ali,
Com suas armas todas apontadas.
Ao meu ver, o amor cristão é andar numa navalha.
É viver conciliando soldados.
E fazer de cada momento com o outro, um tratado de paz.
Não se trata de sujeitar-se.
A kénosis do mestre nao é subordinação.
É fazer da entrega de si a maior arma.
Não se trata de fugir dos embates ordinários da vida,
Mas assumir o outro como aliado.
No mar da instabilidade, o amor é um barco.
No conflito, o equilíbrio saudável sobre as ondas.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Sementes

As sementes não mentem.
Elas morrem.
E morrem da melhor maneira possível.
Elas se dilaceram em forma de broto.
O broto sai de dentro da semente.
Carcome o que restou de vida no interior dela.
Fico maravilhado com a dinâmica da vida.
Devorando-se, um ser vivo gera outro.
Por isso o semeador semeou.
Para que cada um seja uma vida a ser devorada.
Uma semente carcomendo-se no cotidiano.
Assumir a realidade decompositora do existir,
É fugir dos espinhos, das aves, das pedras.
Ser terra boa é não ficar à margem do caminho.
É entender a rota simples de Ser.
E germinar o efêmero.
Ainda que em brotos frágeis e delicados.
Viver é devorar-se.
É regar o universo com um simples respirar.
Deus absconditus

terça-feira, 5 de julho de 2011

Quero ignorado (Fernando Pessoa)

Quero ignorado, e calmo
Por ignorado, e próprio
Por calmo, encher meus dias
De não querer mais deles.

Aos que a riqueza toca
O ouro irrita a pele.
Aos que a fama bafeja
Embacia-se a vida.

Aos que a felicidade
É sol, virá a noite.
Mas ao que nada ’spera
Tudo que vem é grato.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Expectativa

Ex-pectorum
Tirar do peito.
Pôr para fora de si.
E trazer o mundo para dentro.
É bem diferente da Esperança.
A esperança pertence aos que já não vivem.
Eles não têm mais peito.
Viver é não esperar (putz, plagiei Pessoa agora)
Viver é arrancar do peito um mundo.
Minha mãe me dava Bactrim quando eu era criança.
Xarope expectorante.
Ele era vermelho e ruim.
Tirava toda expectativa.
Vocês já provaram o gosto do Bactrim?
Bleeerrgghhhh!
Eu não nasci pra esperar colheres de xarope.
Que no seu amargor prometem tirar o amargo da vida.
E a tosse do peito.
Já não espero mais.
Procura expectorante de sentido.