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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Ela cantava

Segunda-feira. 6h30.
A revanche do fim-de-semana.
Há um quê de crueldade da vida para o ser humano.
Pelas ruas entupidas de mau-humor e sono,
Uma fumaça rabugenta sobe apagando a euforia da antevéspera.
Eu, patibulante, ouço pelo rádio as mesmas notícias de ontem,
Que provavelmente são as mesmas de anteontem, e de dois séculos atrás.
Notícia é tudo igual.
E eu sou viciado nelas.
Talvez eu as escute pelas manhãs
Para fazer de meu trajeto casa-trabalho um momento de não pensar na vida.
(Porque se pensar, nem vou...)
É minha assinatura à necessidade nossa de cada dia.
Mas hoje foi tão diferente.
Ela encostou ao lado.
Braço pra fora,
Óculos de praia.
Enorme, enorme, enorme.
E cantava, sobretudo cantava e batia palmas sozinha.
No meio da fila frigorífica que rumava ao matadouro necessário,
Ela destoava e entoava um hino ao "fazer-o-quê-é-assim-mesma-a-vida".
Ela tinha escolhido ouvir música pela manhã.
E, apenas por isso, era absurdamente linda.
Na procissão resmungante em ré menor,
Ela era um refrão em lá maior.
Na sua afronta ao cinismo-cinzento das segundas,
Ela me ensinou o óbvio esquecido entre as remelas:
A felicidade não é para onde se vai.
É o modo como se escolhe ir!
Mudei de estação.
Danem-se as notícias,
Vou ouvir Chico.
E que o necessário seja uma valsa!
Minha segunda já começou sexta.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

I-Reverenciar

Re-vere-nciar: reconhecer como vero.
Curvar-se diante da Verdade.
E quem se curva, se move.
A verdade é dos moventes.
As certezas, dos movidos.
Dos que acompanham seu movimento pendular.
O reverente se curva.
O adorador, beija.
Nas relações humanas é bem assim:
Quando o outro para nós se torna uma Verdade,
Então já somos um arco.
Uma parábola em direção ao chão.
O bom de se curvar é poder olhar para a unha do próprio pé.
E ver quanto chão percorrido o sustenta.
Não consideres ninguém verdadeiro sem antes olhar para teus próprios passos.
Talvez eles te levem para além daquele a quem tu agora reverencias.
Quando se ama é diferente.
Os passos já não pisam o chão,
Meu Deus, é tanta unha, que já não cabe nos dedos!
O amor acontece mesmo é na irreverência.
No descuido das roupas que trocaram de gavetas,
E que preferiram trocar de corpos também.
No mau-humor,
No mau-hálito,
No mal-dormido olhar,
Na mal-feita barba.
Viramos adultos quando descobrimos que quem amamos rói unha.
Aliás, quando descobrimos que ele "tem unha".
(E ainda assim o amamos).
É na irreverência que a verdade imóvel
Se descobre entre dúvidas apaixonantes.
Eu reverencio o amor dos incertos,
Dos curvados sobre os pés.
Não consideres como amor da sua vida alguém que te é uma resposta.
Ama aquele que te faz ser perguntas.
O amor se esconde da satisfação.
Silencioso, ele reverencia os irreverentes.
A Risada é a melhor carícia.


sexta-feira, 8 de fevereiro de 2013

Herodes

Ele recebeu a cabeça de João em um prato.
Cortou o profeta. Separou o ser e a fala.
Dividiu o justo para não assumir a própria divisão.
De tanto ouvir falar os alheios,
De tanto levar em conta as opiniões dos outros,
Prometeu metade de um reino aos que o seduzissem.
Metade mesmo, porque inteiro ele nunca foi.
E, com uma dança, o efêmero o rompeu em incertezas.
Somos todos Herodianos quando nossa vida gira ao redor do externo.
Ou seja, quando "o que falam de nós" tem mais valor do que o que somos.
Não fazer da janela uma porta.
Personalidade exige pessoalidade.
Ser um consigo é o primeiro passo para se tornar rei.
Quando o "ouvir falar" se torna discurso,
Quando a "opinião alheia" se ensina como doutrina,
Quando se decide a partir do "efêmero dançante",
Então já não se governa,
E o rei se torna o pior dos escravos.
A divisão do corpo do Batista,
É a divisão da alma de Herodes.
Não confies tua vida aos que governam divididos em si.
Não coroes a quem se direciona pelo ouvir falar da multidão.
Não participes dos banquetes onde o efêmero embebeda o juízo.
João Batista aponta a Palavra que vem.
Herodes, as palavras que se foram.
E nem eco formaram.
Entre o "falado na boca de muitos"
E o "Verbo" feito gente,
Há um espaço infinito,
Que jamais será superado pelas certezas vacilantes.
Para quem faz do divino algo de que se ouviu falar,
O encontro será sempre um lugar de medo.
E o deus, uma afronta.
Os sábios usam a cabeça.
Os profetas a levantam.
Os imbecis preferem cortá-la.