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segunda-feira, 27 de abril de 2009

AS MÃOS UNGIDAS DO ZÉ

Naquele dia acordei cedo. Seis da manhã e eu já tinha rezado todas as orações devidas. E as indevidas também. O Zé pulou às cinco. Fez café no coador rasgado que teimava em ficar pendurado no prego atrás da porta da cozinha. Esquentou o feijão sem graça, mexeu com o arroz contado e juntou um ovo estrelado na tampa. Fechou a marmita, amarrou na magrela e foi. Eu também fui. Eu, ao encontro do Cristo. O Zé, ao encontro da vida, a dura vida de cada dia.
Passei a manhã ciscando. Não é só galinha que cisca. Homem também cisca quando sabe que vai se tornar alimento. E a hora de ser devorado tinha chegado. A galinha já estava gorda e a faca amolada. Olhando para aqueles que me degolariam, me meti na roupa devida, estiquei o sorriso no rosto, e brindei o último (primeiro?) momento rumo ao sim definitivo.
O Zé também ciscou. Trabalhou duro, desde as sete. O Sol continuava lá, sequinho, sequinho, estralando as mamonas do terreiro. Impiedosamente. Frio e calculadamente sendo Sol. E o Zé ciscando comida. Não pra si (pois comida de Zé fica embrulhada com jornal e pano velho ao redor de uma lata medida de alumínio), mas para os filhos e pra esposa. O Zé olhava o cimento, a parede por acabar... Eu olhava a vida e o altar a se aproximar.
Encontrei-me com o Zé às dez, na construção. A mesma que, por um acaso, se tornou meu terreiro. O Sol lá... de seco, tinha virado braseiro. Rapidamente, olhei primeiro as paredes, depois o chão. Tudo ali, pra mim, era chão e parede. Na verdade, o Zé fazia parte do chão e da parede. O Zé era alguém pisável e enconstável. De repente, seus olhos miúdos me detiveram por um instante. Quando virou o pescoço, vi seus dedos tortos e sujos saírem pelos chinelos gastos. Confesso que antes dos olhos, vi os dedos do pé do Zé. Nesse momento, senti que algo o Cristo me falava através deles. Cristo também teve dedos nos pés. Num único instante, o Sol-braseiro lançou uma flecha de luz nos pés do Zé e aquilo me motivou a falar-lhe. – Zé, hoje eu me tornarei padre, venha participar! Quero que você reze comigo! O Zé se colocou sobre os pés rachados, tirou o suor da testa e abriu um largo sorriso desdentado. Mas não respondeu. Apenas prometeu que em menos de uma semana a construção estaria pronta pra eu poder usar. – Logo o senhor vai poder dar catequese aqui! Eu pisaria o chão batido pelo Zé. Eu tocaria as paredes erguidas pelas mãos do Zé. Naquela sala onde vida e poeira se confundiam, eu exerceria a vida de padre.
Voltei pro terreiro e me preparei pra imolação-consagração. Tudo muito bonito. O dia, com seu Sol incandescido deu lugar a uma noite fresca e serena. No meio da alegria de palmas efusivas, mostrei as minhas palmas ungidas com óleo. O Cristo também mostrou as palmas. Mas também mostrou o lado. Chorei porque não via em meu lado nenhuma ferida. A galinha continuava viva e a multidão ansiosa por degolá-la. Minhas mãos destilavam vidas e sonhos de tanta gente com suas lágrimas. Feliz, porém, insatisfeito, me encaminhei pra festa preparada. Na porta do salão de festas outras palmas me esperavam. O Zé estava no portão, sozinho, meio amuado, doido pra comer e beber da alegria daquele lugar. Quando me viu chegando, correu ao meu encontro. As mãos do Zé me alcançaram. Naquele momento eu fui ordenado.
Uma galinha só tem dois fins: botar ou virar mistura pro macarrão de domingo. Eu nunca botei nada além de esperança no Deus-Amor. Mas, naquele instante, minha alma galinácea encontrou seu sentido. O Zé não me disse nada. Quando eu elevei minhas mãos recém ungidas para ele beijar, ele as segurou, não beijou, e mostrou as dele. Confuso, olhei cada detalhe, cada calo, cada linha aberta pelo destino da vida. Quando fechei os olhos, escutei a voz do Zé ressoar em meus ouvidos: - Lembra de mim? Sou o pedreiro que você convidou hoje cedo!
Confesso que eu lembrava dos dedos do pé do Zé, mas não do seu rosto. Os dedos do pé também têm face! Percebi que eu deveria beijar sua mão, pois as mãos do Zé possibilitaram que as minhas fossem ungidas. Na vida daquele homem sofrido, que trabalhara o dia todo pensando na festa que o aguardaria, eu encontrei sentido pra minha. O Zé era o macarrão que me esperava na panela. Tomei-o pelo braço e entramos no lugar tão carinhosamente preparado. Eu e a vida do Zé. Como noivos que desfilam pelo tapete estendido rumo ao altar da consagração, eu e a vida do Zé celebramos a união entre o meu desejo e a humanidade. Minhas mãos só existiam para a mão ungida do Zé. Mão ungida de óleo casada com mão ungida de vida.
Naquela noite, o Zé tomou todas. Bebeu até cair. Ficou sentado em lugar de honra, ele e seu terno surrado. Quando alguém o incomodava, ele se punha de pé, estufava o peito e dizia: - Foi o padre que me convidou! Eu apenas cacarejava, balançando a cabeça com um sim. Lembro-me de ter visto o Zé dançando, rodopiando de alegria. Suas mãos sempre estendidas para a esperança. Minha maior alegria é saber que o Zé continua ali, bebendo, rindo. Quando todos foram embora, cheios do macarrão com galinha, ele permaneceu lá, sempre ao meu lado. Foi o último a sair. Os Zés nunca me abandonarão.
Depois daquele dia, o Zé continuou a estralar ovos (que não foram botados por mim) para sua marmita sem graça. As linhas de sua mão continuaram a se misturar aos calos enormes. A cada dia, mais e mais Zés estendem suas mãos para o mundo beijar. E ele não beija. Porém, após aquele 20 de abril de 2009, a vida do Zé, de suas mãos ásperas e de seus dedos tortos, nunca mais será a mesma. Sua vida se consagrou na minha. Pra sempre!
Se hoje sou padre, é porque as mãos ungidas do Zé foram impostas sobre meu coração. Se hoje sou alimento, é porque as vidas de tantos Zés foram unidas à minha. Em cada calo de tantas palmas do mundo eu deposito meu desejo de fazer o bem. Ser padre, para mim, é exatamente isso: erguer as mãos no altar do Cristo, para que as mãos do Zé continuem erguidas. Que o Cristo (a palavra Cristo significa ungido) me ajude a alimentar os Zés. Me ajude a erguer suas mãos pro céu pra esperar. Esperar por uma festa que jamais se acaba... onde eu, Zés, galinhas e mãos estaremos todos juntos, ao redor do mesmo banquete. Lá, beberemos até cair do vinho doce chamado esperança!