Visitas

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Prato Quente

Existir é devorar e ser devorado.
Do exato momento de nossa fecundação até o último suspiro,
Devoramos incessantemente o Ser.
É uma comilança só! Dá gosto!
No movimento, somos roedores natos de absolutamente tudo.
Relações devoradoras...
Lembro-me de uma cena do filme "A Lei do Desejo" de Almodóvar,
Num beijo, um devora a intimidade do outro.
Recentemente, tive uma explicação sobre aquilo que se chama putrefação.
No exato instante de nossa morte,
Quando o coração para,
Os microorganismos (vivos e devorantes) que temos em nosso corpo,
Se multiplicam numa velocidade inimaginável.
Alguém lá dentro proclama:
- Está aberto festival gastronômico!
E os vermes se banqueteam e multiplicam,
Velozes, famintos, atrevidos.
De seus gases digestivos, surge o inchaço dos corpos.
Do devoramento desses micro-comedores,
Explode a carne em decomposição.
Sim,tambpem a putrefação do corpo é um banquete!
Não acredito mais em morte,
Acredito em ceias, onde a matéria viva renasce impávida,
À cada mordida do existir,
Ainda que de vermes que querem meu fim.
Nessa perspectiva, a vida é um embate esfaimado,
Daqueles que comem e dos que são comidos.
Des-existir é perder a fome.
Morre quem se sente saciado.
Como diria Guimarães Rosa:
"O animal saciado dorme!"
Se queres permanecer vivo,
Alimenta tua fome!
Devore o mundo ao teu redor!
Antes que te mastiguem teu interior!
Sê tu mesmo, a digestão do universo,
Engula o Absoluto em pratos lentos!
Quando eu morrer,
Quero que me cozinhem em fogão de lenha,
E me sirvam em pratos de barro.
E não em marmitas frias.
Ser feliz é não ser requentado.
A vida é um prato que se come quente!

sábado, 19 de novembro de 2011

A vaca

Saudade dos tempos de Seminário.
A vocação fresquinha, cheirosa...
Um episódio me marcou muito:
Faltava carne na casa,
E um fazendeiro caridoso doou-nos uma res.
Uma vaca-presente à nossa espera.
Condição: busquem, amarrem, matem e limpem!
Safari bovino nas terras do Pontal.
Um pasto enorme e deitado à espreita!
Mãos a obra! Todos se transformaram,
Em um fragmento de segundo,
Já não éramos seminaristas,
Éramos cowboys, açougueiros e jacks estripadores.
Kombi cheia, facas às mãos e chapéus, chapéus, chapéus.
Rezamos pela alma da vaca.
(sim, naquele tempo eu ainda acreditava em alma, inclusive bovina)
Os mais fortes e ágeis a laçaram, e a arrastaram.
No pasto deitado o rastro do nosso desejo.
Sim, também o desejo deixa rastro por onde passa!
Ela estava ali, com a cabeça pronta a ser marretada.
Por um instante mágico batizei-a de Maria Antonieta.
A marreta se tranformou em guilhotina.
Nós, do seminário-Bastilha ululávamos felizes.
Eu havia descoberto a capacidade humana de matar pra sobreviver.
A vida se move a marretadas.
Não houve tempo para as exéquias.
Ta lá um corpo estendido no chão!
Patas pra cima! Desossamento do Ser.
Eu vi um córrego vermelho escorrendo sinuoso no pasto verde.
O sangue da vaca me bebeu.
Ela tinha um rio vermelho dentro de si.
Sim, eu também poderia matar!
Nelson Rodrigues já estava em mim e eu não sabia.
A tarde caiu fumacenta.
Lambuzados de sangue voltamos pra casa,
A kombi lotada de carne.
Seminaristas e coxão-moles se enamoravam.
E nossa humanidade enfim estava redimida com sua crueldade original.
Havíamos professado a fé!
E nos descoberto humanos.
E famintos, absurdamente famintos.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

HORÓSCOPO

Eu não acredito em signo.
Apesar de querer ser um.
Não, eu não sou de Escorpião, Sagitário, Áries e o escambau.
Mas tento viver uma vida horoscópica.
Não quero que estrelam e planetas me guiem.
Pouco me importam as ascendentes, luas e demais baboseiras,
Que revelam os astros eu suas orgias,
Sejam elas de Plutão, Saturno ou Vênus.
Não são os astros que me formam.
Sou eu que os conduzo.
Eu os movo antes de ser movido.
Psiiiu! Não contem pra ninguém, mas eu faço girar os planetas!
Aliás, o pior signo não é esse do zodíaco, horóscopo e outras doces ilusões.
O pior signo é o que nos reduz a uma marca de roupa, refrigerante, carro ou banco.
O pior signo é o que nos faz acreditar que o universo tem uma órbita econômica.
E me catequiza sob efígies coloridas de cartões de crédito.
De Libra, Gêmeos e Touro eu não tenho medo.
Tenho medo de MasterCard, Visa, Nike, e Coca-Cola...
Eu queria ser uma órbita.
Sim, eu acredito em vidas-signo, vidas que apontam.
Vidas que são constelações prontas, circulantes.
Vidas que não se reduziram a um signo.
Oxalá eu possa um dia ter uma nave espacial-especial,
Pra esfumaçar o universo buraco-negro dos signos mercadológicos.
E fazer da minha vida mais que um signo,
Existência trágica e significada,
Mas com um desejo significante danado de bom!

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Decifrar-se

De-cifrar-se:
Romper com as cifras impostas sobre si.
Conversão monetária perene.
Câmbio corrigido do simplesmente si.
O que sobra de mim além dos juros que minha vida cobrou?
Somos um monte de juros.
Quitamo-nos diariamente em parcelas únicas.
Aliás, somos um carnê que se destaca folha por folha,
Lentos, suaves, insistentes.
Cada prestação do Ser é uma cifra a menos.
Uma dívida de si com o outro.
No Reino do provisório, viver é amortizar-se.
Dialética sem código de barras.
Eu queria pagar o que me devo.
Mas ainda sou inadimplente de mim mesmo.
Há muitas cifras sobre mim.
Passado contabilizado em registros múltiplos.
O amor é um cheque em branco.
Decifrar-se é investir-se.
E descobrir-se um devedor nato.
Ô vidinha financiada meu Deus!

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Caos

Às vezes o caos cansa.
Mas que é bom é.
O caos é o grito humano contra o Tempo.
Ser caótico é ser destemperado.
Hoje o tempo me fere as têmporas.
Ouvi anteontem a Carmem, de Bizet.
O caos é indômito como um touro.
A paixão é cigana.
A morte é a arena eterna do Ser.
Há momentos em que fujo da arena.
Tenho medo de touros.
Mas passo a vida tentando montá-los.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Heterônimos

Meu blog tirou férias.
Já voltou.
Ele estava rebelde comigo,
Estava saturado de mim.
Pediu arrego.
Dei-lhe duas semanas, sem abono pecuniário.
No fundo, o blog é um heterônimo.
Ele não me é.
É bom inventar algo que não somos e sê-lo por alguns instantes.
Aliás, o que somos senão aquilo que fingimos ser?
Escrever é ausentar-se.
Pessoa também se ausentou em Caieiro, Reis e Campos.
Temos que tratar nossos heterônimos a pão-de-ló.
Dar comida, descanso, rezar por ele.
Eu preciso do meu blog,
Ele é minha relação mais profunda com meu eu que não é.
A heteronomia é a manifestação mais ínitma da vontade de si.
É o ser-aí destilado em outro.
Eu, quando era criança, brincava com meus bonequinhos de plástico.
Eu falava neles.
Cada soldadinho era um universo.
Cabia a mim ser o general, criar táticas,
E deixar sê-los.
O Ser é inventado.
Infeliz aquele que o persegue em teorias abstratas.
Eu cansei de persegui-lo.
Agora, eu O invento.
O meu Deus, eu mesmo inventei.
Por isso ele me excede.
E eu o adoro em letras tortas.