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quarta-feira, 29 de maio de 2013

Exalar-se

Uma das coisas mais importantes da vida
É saber que as flores não morrem, fenecem.
Fenecer. Fene-ser.
Elas que não falam.
Exalam. E ex-alando, vão sendo e só.
O perfume, ao mesmo tempo que é suspiro da planta,
É grito. Elas suspiram a existência para que respiremos.
As flores guardam encaracoladas até o último fragmento de segundo
Um universo todo em forma de mistério.
Basta um sopro. Basta um único raio de Sol,
Para que o botão se torne a roupa toda...
Para que a cor tenha cheiro...
E para que uma invasão ousada comece.
O ar, coitadinho, de tão atraído, se sufoca nele mesmo.
Não antecipes o desabrochar das coisas ocultas...
Permita com que o tempo seja o primeiro enamorado de tua fragância.
E o jardim das possibilidades,
O melhor frasco a ser entreaberto.
Exalar-se também é exilar-se.


quarta-feira, 22 de maio de 2013

O Não-Dito

A Verdade habita o território das palavras mudas.
Daquelas que insistem em não percorrer a língua.
E se escondem nas amígdalas,
Que é justamente por isso que inflamam.
Falar é sempre uma redução.
O Não-Dito guarda em si tesouros inenarráveis.
E, por ser um tesouro, mesmo não sendo exposto,
Dita os rumos das mendicantes palavras fugitivas.
O silêncio é o maior grito possível.
No amor, é o Não-Dito que dita as regras.
Ele atravessa olhares e zomba do dizível-risível.
Na política, o Dito é disfarce.
O Não-Dito é regra. É cânone.
Se a palavra é a arma,
O Não-Dito é a trincheira.
Dias atrás vi o Não-Dito por aí.
Ele era enorme e tinha trinta e quatro olhos.
Paquidérmico, ele demora a se mover de um lado a outro.
O Não-Dito é irritantemente lento.
O que se diz voa rápido, é água,
O que se esconde é solo.
Permeável terreno fértil pra todo tipo de planta.
Os julgamentos se esquivam dos argumentos,
E fazem dos dizeres um cenário para as marionetes da razão.
O Não-Dito é trêmulo. Perpassa as sombras.
O Não-Dito não é bom nem ruim.
Porque "bom" e "ruim" são atribuições daquilo que se fala.
Morrer é, antes de tudo, Não-Dizer.
E, por isso, a única verdade inevitável.
Existir é disfarçar-se de verbo e conjunções uma porção de substantivos silentes.
Deus mesmo, para criar, precisou ser Verbo.
Bem-Dito o Não-Dito que calou o Mal-Dito.
E Calou calado os dizeres absurdos.




sexta-feira, 17 de maio de 2013

Di-ferenças e Di-vergências

Entre as palavras diferença e divergência existe um abismo.
E o nome dele é ignorância.
Diferença é necessidade.
Divergência é impossibilidade.
Quem não suporta a diferença já é divergente desde o princípio.
A diferença é Universal e incrivelmente simples.
A divergência é Particular e incrivelmente complexa.
Di-Ver-Gência: Romper a verdade ao meio.
Atravessar de dúvida o verdadeiro.
Diferença é poesia.
Divergência é aula de gramática assintética.
O diferente con-vive.
O divergente con-dena.
O oposto de "diferença" não é "igualdade"
É "semelhança".
O oposto de "divergência" já é "con-vergência".
Que por uma ironia maravilhosa,
Tem a mesma raiz de "conversão".
A fé só existe em forma de diferença.
E o pecado em divergência.
O mal rompe a verdade ao meio.
E a atravessa com a lança das falsas certezas.
O amor, pelo contrário, é in-sis-tência.
Per-sis-tência.
Pa-ciência.
Mas se torna falência quando não se admite diferença.
Quando se ama, todas as línguas se tornam uma.
Eu só acredito em uma Verdade diferente.
Con-vergente.
Que insiste nas pessoas como únicas.
Mas não iguais.


quarta-feira, 15 de maio de 2013

Concurso Literário

Eu tinha quatorze.
Espinhas. Braços longos-finos. E um cachorro que não usava coleira na rua.
Mas eu já lia jornal todo dia e isso me transformava de mero adolescente em um leitor.
Jornal me fascinava porque tinha frases curtas.
E eu as amo até hoje.
O cachorro, que não usava coleira, entretanto, rasgava, entre outras coisas
Chinelos, Roupas, contas de energia elétrica e o carnê do dízimo.
Mas naquela manhã, o infeliz tinha esquartejado o jornal.
Chineladas.
Compadecido do violentado, tomei-o nas mãos e recolhi-o sobre a mesa do café.
Eu ainda não havia acordado pra mim. 
E foi aquela notícia que me despertara.
"Fulana de tal ganha concurso literário em Presidente Prudente. Aluno de escola pública fica em segundo lugar".
A Fulana de Tal eu não sei quem é.
Mas o segundo eu começara a conhecer.
Calcei os chinelos-educadores-caninos e penteei lambidamente o cabelo pro lado esquerdo.
O cão, que não tinha rabo, pois se o tivesse, já o teria metido entre as pernas,
Agora me olhava com ar de "Leve-me, não nasça sozinho!"
E levamo-nos. Um ao outro. Sem coleiras. Lado a lado.
Rumo ao prêmio de vice. 
Não era um rapaz e o seu cachorro.
Era a Esperança que tinha descoberto na Misericórdia um percurso.
O colégio do prêmio era longe.
Meu chinelo mordido reclamava aos montes pelos montes a serem subidos.
A professora de literatura me aguardava na portaria principal.
Ela era ruiva. E fazia permanente no cabelo. 
Vou lhes confessar (rio enquanto escrevo) ela parecia a Mamma Bruscheta!
Ela olhou meu chinelo. Que timidamente sorriu se encolhendo sob os dedos.
E antes de um bom dia, disse que o cachorro não poderia entrar.
Na sala ao canto, um homem com cara de diretor me esperava.
- "Menino, quem escreveu isso pra você"?
- "Fui eu mesmo. Eu gosto de escrever poesia". 
- "Não minta que é feio. Foi seu pai, ou algum tio seu que escreveu?"
- "Não sr., meu tio só lê o que eu escrevo, mas sou eu que faço".
- "Você poderia escrever outra aqui para eu ter certeza?"
- "Não sr., poesia não é assim igual cachorro, que você chama e vem. (eu esgueirava o olho e via o meu fiel escudeiro sentado, arfando na porta da escola). Poesia é igual gato, que você chama, não vem. E quando você menos espera, pula no seu colo e lhe faz carinho. Às vezes arranha, mas é inevitável."
- "Então você vai ficar em segundo lugar mesmo, porque não consigo acreditar que foi você que escreveu".
- "Mas foi!"
- "Não foi. E o concurso era de literatura e não de poesia!" 
Eu havia descoberto que a melhor palavra não precisa ser pronunciada.
Naquele momento. O silêncio rimou em mim.
Na sala de fora, as professoras aguardavam com xícaras na mãos.
Várias fotos foram feitas.
E eu ganhei apenas uma medalha de prata com um desenho do Drummond na efígie.
A filha da professora com cara de Mamma foi a primeira.
E meu chinelo havia acabado de soltar a correia.
Descalço, voltei sorridente e liberto naquela manhã.
Eu não tinha sido o primeiro. 
Tinha sido o único.
Enquanto isso, o Drummond prateado de meu pescoço sussurrava repetidamente:
"Meu filho, a poesia não suporta coleira".
Sim, eu e meu cachorro tínhamos uma enorme subida pela frente.





quarta-feira, 8 de maio de 2013

Suportável

Suportar é infinitivo.
Um verbo que recorta o tempo para sugerir um "para sempre"
E também são verbos infinitivos:
Olhar, paquerar, flertar,
Apaixonar (opa, esse só pode ser reflexivo, para nosso infortúnio)
Segue a lista: beijar, namorar, casar,
Procriar, Mamar, Alimentar,
Trocar, Papar, Passear,
Pagar, Pagar, Pagar,
Descuidar, Discutir, Brigar,
E, infelizmente, Separar,
Que tal como cortar e romper
É impossível ser menos infinitivo que Esquecer.
Para todos os efeitos, existe o Recomeçar
E sobretudo Insistir, Cair, Levantar, Cair, Levantar...
Já morrer não existe infinitivamente
Ou se morre ou não se morre.
Morrer tem o tempo certo e não é pra sempre,
Pois daí já não é infinitivo é gerúndio,
Estou morrendo de tanto viver.
Mas uma coisa é certa:
Se suportar não fosse infinitivo,
Se suportar não fosse verbo,
Todo movimento seria completamente inútil,
E toda vida uma tentação em forma de sinônimo.
A salvação foi suportada nos ombros antes de pregada.
É no equilíbrio do peso que o suportar se torna suportável.