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quinta-feira, 25 de março de 2010

Uma criança segurando a placa

Hoje, na estrada, vi uma criança segurando uma placa de trânsito.
Ou seria a placa que segurava a criança?
Fundidos. Placa, criança, trânsito, eu.
A seta apontava o caminho.
A criança queria apontar-se. Segui-lo? Talvez!
Há no mundo e em mim uma grande sede por setas.
Há tempos penduro-me em setas vazias.
Há tempos as estradas parecem todas nuas.
O caminho permanece lá, mas eu, criança, sigo pendurado.
A ausência de placas desencaminha-me. Tenho que confessar!
Caminhos, caminhos, caminhos.
Na inconseqüência da vida-seta, percebo-me agarrado ao tempo.
Tento prender num instante aquilo que nunca foi.
Tento traduzir em palavras aquilo que o caminho mudou.
In-con-sequência.
Não há sequências comigo. Só caminhos e placas desconexas.
Por que não consigo agarrar-me a nada? (Ninguém?)
Por que as setas continuam virando?
Segui-lo?

Ao teu lado direito espero.
E tento pendurar-me no que já não vejo.

terça-feira, 23 de março de 2010

Festival de Curitiba

Estou participando do festival de Teatro de Curitiba.
Aprendendo coisas. Experimentando outras.
o Teatro é vida.
Ontem vi duas peças: A missa do Galo, de Machado de Assis, e De como fiquei bruta flor, de um grupo paulistano. Gostei de ambas. A segunda falava sobre o amor. A descoberta de uma relação.
De fato, o amor não pode ser um quadro pendurado na parede.
Deve ser queimado para viver em cinzas.
Hoje verei mais três peças.
To ansioso.
Contatos. Eva sairá.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Um vaga-lume

Abri meus olhos lembrando-me do vaga-lume. Ele me piscou. Recordei que anteontem, enquanto eu e um amigo saíamos de um restaurante, vi uma criança correndo. Ela seguia uma luzinha que acendia e apagava sem pedir licença a ninguém. Estávamos todos ali, no centro de uma avenida cheia de luz elétrica: eu, a criança, o amigo e o vaga-lume.
O problema é que a mãe da criança, mesmo sem ser convidada, também estava ali: “- Fica longe dele, filho, é bicho!”. A criança chorou e não piscou mais. Tomado pela mão clara de uma mãe escura, foi arrastado para o carro preto estacionado à frente do shopping que, àquela hora, já ia se apagando.
O vaga-lume se ofendeu. Bicho ele não era. Mais do que todos nós, ele era civilizado. Era um ser com luz própria! Alto lá! Que talvez ele voasse baixo, que fosse estranho para ele vagar sozinho naquela hora da noite ainda vai, mas bicho ele sabia não ser. Irritado, mas impotente diante da estupidez humana, seguiu seu desfile alternante pela avenida quase deserta. Num breve momento, foi possível notar sua sobrancelha erguida, tristonha, enquanto retomava o caminho de casa.
Naquela mesma noite, eu também tinha piscado. Após um dia turbulento de atividades, pude ascender. Acendi uma conversa agradável com um bom amigo comendo galinha. Quando vi a cena da mãe com a criança, pensei comigo: somos galinhas devoradas por essas luzes antropófagas do mundo moderno. Vivemos voando baixo. E não notamos que temos luz própria. Apagados, preferimos mais as luzes fluorescentes de uma sociedade artificial do que a pureza simples e mistérica de um ser piscante. O mundo com sua imponência artificial. O vaga-lume com sua simplicidade alternante. Vagando entre consumo, lazer, dinheiro e trabalho (para consumir mais), sentimos medo de se aproximar das coisas pequenas da vida. O alternador da necessidade inflada não permite nem o tempo de piscarmos.
No choro da criança arrastada eu vi a humanidade. Ela me gritou. Nós, que somos mais bichos que o vaga-lume, perdemos a alegria de ouvir e ser ouvidos. De reluzirmos simplesmente a alegria de um encontro. Escurecemo-nos diante do fascínio ridículo de uma TV, ou do brilho atraente do prazer. Esquecemo-nos de que temos luz própria. Devoramos tudo aquilo que assombra nossa triste e apagada rotina. Somos impedidos de seguir vaga-lumes pelas ruas.
Hoje me decido por ser vaga-lume. Piscar a simplicidade da vida num mundo cansado de luzes artificiais. Para isso, proponho acender gestos simples e antigos: descobrir a luz suave de uma boa conversa (ainda que seja lambuzada de galinha). Contemplar o céu numa noite enluarada ao lado de alguém, ou simplesmente sozinho. Sentir o beijo do vento no fim de um dia quente de verão. Pisar descalço na lama. Abraçar.
A beleza da vida não está no neon dos anúncios de shoppings áridos. A beleza da vida não está na correria frenética dos carros e da vida. A beleza da vida não está no muito saber. Nem no muito ter. A beleza da vida é lenta. É suave e alternante como aquele serzinho piscante. A beleza voa nos detalhes da existência. E pisca.
Voa, voa mesmo vaga-lume! Desfile sua simplicidade nessa avenida cheia de lojas e seus letreiros tristes. Acenda no mundo a beleza da naturalidade de ser quem você é! Faça inveja aos que te perseguem! Na sua alternância, somos atraídos como crianças cansadas de ser artificiais. Pisque-nos. Ascenda-nos. E que sejamos todos mais do que meros bichos apagados.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Não posso reler-me, mas posso assinar-me (René Char)

Essa é uma grande verdade!
Nunca nos relemos. Mesmo quando nossa consciência quer apreender nosso ser, ele nos escapa.
Tentar dizer-se é uma insanidade.
Tentar reportar-se é uma loucura sem tamanho.
Não podemos descobrir tudo o que somos, tendo em vista que já somos lidos.
Lidos e lidados.
Todavia, podemos assinar-nos.
Trata-se de afirmar aquilo que foi pronunciado de nós quando nos leram.
Ou quando nós mesmos nos lemos.
Eu assino embaixo sobre tudo de mim.
Assino à mão e à caneta.
Imprimo o dedo naquilo que não entendo.
Sem testemunhas, digo sim!
E assim me surpreendo com o caos da existência.

terça-feira, 9 de março de 2010

O DESCUIDADO DA VIDA

Para Guimarães Rosa, a felicidade está no descuido da vida.
Tenho tentado me descuidar.
Porém a vida exige cuidado.
Vivemos nessa tensão diária entre cuidar-se e des-cuidar-se.
O passo para o descuido é sempre o mais difícil.
Conservar-se é o que queremos.
Ó Deus, cuidai para que eu aprenda a descuidar-me!
Pequenos momentos esparsos.
Pequenas sensações de ausência.