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domingo, 23 de setembro de 2012

A última folha

Ela precisa cair,
Para que a primavera aconteça.
Eu já falei várias vezes sobre os ipês,
Mas não me canso.
Eles nem sempre estão floridos,
Por isso são interessantes.
É preciso esperar seu colorido sem ansiedade.
Os roxos, junho.
Os brancos, agosto.
Amarelos, setembro.
Rosas, derradeiramente, agora.
Os ipês são metódicos.
Eles não se antecipam.
E assim fazem da aridez uma florescência.
Sim, é no inverno seco e sem cor que a primavera é cozida.
E ai daqueles que esperam flores sem ter a coragem de perder as folhas.
Todas. Absolutamente todas.
Basta umazinha dependurada,
Para que o ipê marrento se negue a florir.
Como na vida, que exige desprender-se dos galhos a todo tempo.
Há quem insista em agarrar-se ao tempo.
E permanece preso à seiva de outros,
Alimentando-se de fomes alheias.
Há quem acredita na ilusão do "sempre".
E se esquece que essa palavrinha começa com "sem".
A folha que solta do galho não cai.
Ela salta.
E transforma a queda em voo livre.
O colorido é a recompensa dos que pulam.
Os galhos são cinzas e não têm perfume.
Não se entristeça pelas folhas caídas,
Não permita que a saudade do galho impeça o perfume das flores.
Afinal, elas sempre vencem.
E às folhas, cabe sempre o dever do salto.
Qual sua última folha?

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

A cama assassinada

Quando abriu os olhos, acordou com a certeza de que tudo tinha sido um sonho.
Ele precisava se denunciar.
Afinal, ele próprio era o assassino.
Ao seu lado, ela jazia, emudecida.
Com sete facadas odiosas,
Ele havia esquartejado a cama onde dormia.
Sim, a cama, pois ela era um confessionário calado.
Onde o passado, feito de falta e dor,
Lhe sussurrava aos ouvidos toda noite.
A cama havia sido comprada em prestações.
Mas a promessa foi feita à vista.
Ali, ambos trocaram juras,
Beijos, gametas e depois tapas.
Solitário, nas noites quentes,
A cama lhe parecia um transatlântico.
Enquanto ele, um náufrago.
Quando os sonhos se partem em dois,
O pesadelo é inevitável.
E a cama, que um dia sustentara o peso de ambos,
Agora, perfurada, era o retrato de seu coração rasgado.
Com a faca graúda e reluzente,
Presente de uma madrinha que ele jamais escolheu,
Cortou a jugular do leito revestido em lençois de desilusão.
Ao sair pela rua na direção da delegacia,
De pijamas e travesseiro na mão,
Imaginava qual seria a acusação que faria contra si.
Afinal, a cama, indefesa, não teve direito algum de reação.
Ela sangrava serena,
E silenciosa, no quarto,
Era o retrato de um fim premeditado.
Triplamente qualificado.
Diante do delegado, que lhe perguntava o motivo,
Ele apenas acenava com um sorriso,
E não abria a boca,
Apenas pensava silente.
É saudade seu doutor, é saudade...
Eu a matei com um tiro de saudade.



quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Por que penso tanto no fim?

Talvez porque pensar nele me faça viver cada dia em forma de começo.
Talvez porque acabo-me a cada milésimo heraclitiano de segundo.
Talvez porque quando chegarmos lá, ele não exista.
Talvez porque o finito tem cor, cheiro e pisca.
Talvez porque hoje é um ontem de amanhã
Talvez porque o meio seja entediante.
Talvez porque é no fim que se ama.
Talvez porque sempre anoitece.
Talvez porque meia-noite também é o primeiro instante de um novo dia.
Talvez porque o ponto final exige maiúscula em seguida.
E, talvez, por isso exige-se viver sempre em forma de vígula.
Talvez porque acabar não dói.
Em todo caso, não se desespere.
O fim só chega mesmo no final.
Até lá, tudo tem cheiro de início!

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Desperdício

Às vezes o passado nos cobra.
Ele envia a conta pelos erros cometidos.
O tempo não admite desperdício!
Ele é severo e cruel,
Não perdoa nunca!
A palavra des-perdício é redundante!
Perder-se já é uma forma de des-"ser"-se!
Toda existência humana se dá no des-existir.
O amor que se foi,
A chance não aproveitada,
O deus que passou e ficou pelo caminho,
Os olhos, que ao invés de se cruzarem,
Piscaram.
Desperdiça não aquele que deixa sobras,
Mas o que prefere permanecer com pratos vazios,
E não se arrisca.
Os olhos arregalados salivam por uma espera que nunca finda.
O desperdício é uma forma de fome.
É perder aquilo que nunca se teve.
E descobrir o absurdo descompromisso da vida consigo.
A história não volta.
A folha do calendário, uma vez arrancada,
Não retorna mais.
O que tiver de fazer, faça hoje!
O "sim" não permite amanhã!

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Barcos Vazios

Só eles merecem ser preenchidos.
Quando, silentes,voltam tristes, ocos,
É porque a espera foi vencida pela noite.
Um barco cheio não precisa de mais nada.
Ele se basta.
Vive abarrotado de si.
O barco solitário, sem peixe dentro
É, em si, o próprio milagre em forma de nau.
O receptáculo também é um espetáculo.
Um barco vazio tem um quê de útero.
Não, não laves ainda tuas redes!
Solitárias, elas estão prontas para o futuro.
Não esperar mais pelo peixe...
Ele habita o profundo.
E talvez esteja enjoado da ração-ensimesmádica de todo dia.
Eu, quando fico sem escrever, sinto-me como uma embarcação vazia,
À espera do peixe-palavra nadar em minha direção.
Dá medo! A fome de existir-escrevendo-me assusta.
Então recordo-me sereno
Que é no vazio do barco que a pesca acontece.
A solidão também é piscosa.
Não desistas do mar!
Desistas do raso, onde só o excremento bóia, infeliz.
Antes, vire à estibordo,
Esteja atento, pois a noite continua insistente.
Mas sobretudo, reme, reme...
E contemplarás o milagre saltando em sua espera-rede,
Se agasalhando em seu interior desnudo.
É no imprevisível que o divino habita.
Enfim, quando entupido de peixes-sonhos,
Alcançares a margem sorridente,
Descobrirás que o banquete se faz mesmo não na mesa,
E que a felicidade não é aquilo que enche os samburás,
Mas nos barcos abarrotados deixados na areia,
Prontos para retornar redimidos ao mar-plenitude...
Imenso! Absurdamente descomprometido.