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quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Porto

Disse Pessoa: "o ser humano tem uma ânsia infinita de ser porto ou cais"
Sim, ele quer ser um atracadouro.
Deseja, ardentemente, por navios-pessoas que venham até ele.
Viver é uma maneira pacata de esperar âncoras.
Nos relacionamentos humanos nos completamos.
Só somos horizontes de fato quando servimos de cais a alguém.
Só pode ser feliz quem um dia já ofereceu um pôr-do-sol a alguém.
Nos portos os barcos descarregam o peixe-fruto-do-trabalho no fim do dia.
Eles fazem oferenda ao cais.
Derramando-se em gratuidade.
Os pescadores se amarram a portos como numa teia.
E se dão, se abandonam ao cais mudo.
É um ofertório completo.
Ser porto é saber receber barcas.
Cheias, vazias, solitárias.
Ser porto é avançar no mar e não temê-lo.
Sim, ser porto é ser beijado constantemente por ondas
Que, promíscuas, vêm e voltam sem nenhum compromisso.
Fica decretado que toda onda é imoral!
Imoral é tudo aquilo que não tem interesse em permanecer.
E só faz espuma.
O porto é moral porque espera.
Ele sabe o tamanho da alegria de um barco aos seus pés.
Quietinho, sob estrelas, ele aguada o barquinho cansado voltar do oceano.
Fica decretado que todos os que sabem esperar serão salvos.
Que no mundo maluco das relações humanas
Os portos sejam sinais.
E na sua esperança silenciosa,
Ensinem aos barcos em deriva
O caminho do chão
Arenoso, mole, afundante...
Mas onde cada porto fincou suas estacas.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Consertar redes

Quando o Senhor chamou os filhos de Zebedeu
Eles estavam consertando as redes.
Uma rede rompida não pega peixe.
O trabalho é inútil.
O peixe vaza pelos buracos.
Era preciso pescar de outra forma.
Todos nós temos um momento de barca vazia.
Onde olhamos para nossas redes rasgadas
E procuramos uma outra forma de ganhar o sustento.
São momentos onde ouvimos toda espécie de chamado.
As redes rompidas são sinais de uma vida sem rumo.
Sem isca.
Sem cais.
As pausas que a vida oferece são ocasiões ímpares
De ter a coragem de admitir os nossos furos.
Em várias situações da existência humana
A rede rompida se assemelha a uma nova decisão a ser tomada.
No buraco, um olhar diferente.
Um outro rumo.
Os que acham que os peixes devem caber na sua rede rompida
Jamais conseguirão encher barcas.
Viverão com a isca envelhecida na mão.
E com os furos à vista.
Quando o peixe nos escapa é porque a isca não atrai.
E quando atrai, não segura o pescado em nossa barca.
Viver é consertar redes.
É diminuir o vazão.
É tecer relacionamentos que dão o entrelaçamento perfeito do existir.
Quem faz da sua vida um tecido, ainda que com furos,
Já enocntrou seu cais.
Eu não quero uma margem para pisar.
Eu quero ver no vazio de minha rede uma oportunidade nova.
E quero pescar mergulhando.
O Senhor, que chamou os discípulos.
Não ficou na barca, sequinho.
Pulou de cabeça na água.
Banhou-se.
E se fez, ele mesmo, pescado.
Converter-se não significa permanecer na barca.
Significa ter a coragem de nadar como peixes.
E reconhecer mesmo na cores e nados mais diferentes,
Um traço daquele que os criou.
Quando o Senhor ressuscitado aparece aos discípulos.
Ele os aguardava com pão e peixe.
Os primeiros cristãos se distinugiam dos perseguidores com o sinal do peixe.
Tornar-se um com o mundo, sem ser do mundo.
Fazer de cada vida
Muito mais do que uma rede rompida.
E, no fim do dia,
Deixá-las...
Simplesmente deixá-las.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A dor não assoada

Nelson Rodrigues: "Não se assoa a dor mais profunda".
Genial!!!
A vida é o que se estende entre duas solidões.
Do nada inicial ao nada que nos espera há um tudo se fazendo.
Quando o rio caminha lentamente para o oceano,
Ele simplesmente vai.
Não reclama.
Mesmo nas quedas ele aproveita pra dar espetáculo.
O rio sabe que só existe sendo.
O rio se nada.
Felizes os que olham pro oceano e enxergam o rio.
Na água salgada do mar
Há o tempero destemperado de um líquido doce.
Existir é caminhar na direção contrária à nascente.
Viver é consentir com a foz que nos espera.
Sinto muito em dizer: não há esperança para o pobre rio.
Ele já nasceu desaguado.
Ele que se revolte em outras margens!
Não se pode tirar do fluir o fim que o aguarda.
Todo final é sempre um espetáculo.
Tudo se reconcilia quando não há mais margens.
O mar, ansioso, abre sua boca para engolir o tortuoso rio.
Assoar a dor de ser sendo é secar o rio.
Extirpar a solidão da vida em gotículas de ilusões é uma catástrofe.
A diferença entre a catástrofe e a tragédia é a quantidade.
A catástrofe é coletiva e deseducada.
Não pede licensa. Humilha e foge.
A tragédia é pessoal, intransferível e silenciosa,
Mas com alcance universal.
Na cruz, o Deus morreu asfixiado.
Ele não assoou.
Deu um forte grito e expirou.
Ele não espirrou.
Dor tragada do mundo.
Ele, oceano, foi rio corrido e bebido.
Não, a cruz não é catástrofe.
A cruz é tragédia.
É o pedágio entre o rio e o oceano.
Dá-me, Deus-azul-mar-céu,
A persistência de rios sinuosos.
E que minhas dores não sejam assoadas.
Que elas formem em mim um caudaloso leito.
Piscoso, quieto, solitário.
Onde borboletas não pousem,
Mas saciem sua sede
E alcem voos coloridos.

domingo, 15 de janeiro de 2012

Onde mora a intimidade?

Vivemos à procura de uma morada.
Um lugar pra repousar a cabeça.
Quando o Senhor passou,
Convidou os discípulos para ver onde ele morava.
Eles queriam intimidade.
Queria adentrar a casa,
Sentar-se à mesa
E abrir a porta da geladeira sem pedir licença.
Só se segue aquilo que se ama.
Só se ama o que se conhece.
Só se conhece aquilo com o qual se convive.
Só se convive quando a distração cede à intimidade.
Ser íntimo de alguém é penetrar um quarto secreto.
Vasculhar gavetas,
Lembrar do perfume, ainda que distante.
É ouvir canções e sorrir sozinho inebriado pela memória.
As fotografias não são íntimas.
Mas os fragmentos de segundos entre o o dedo do fotógrafo e o flash
São eternos quando as mãos se beijam nos ombros do amigo.
Mundo carente de intimidade o nosso
Onde as pessoas não se tocam,
Se esbarram.
A intimidade mora na quietude do olhar.
Na delicadeza do caminhar solitário
Que vagueia em lembranças miúdas.
Íntimo é aquele que abriu as portas
E dividiu a morada com o outro.
Só os íntimos se salvam.
A intimidade inventou a eternidade.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Epifania e Cracolândia

Epifania significa manifestação.
Tornar algo público, expor, fazer ser visto.
Tirar de dentro e apresentar ao mundo.
Escrever é um ato epifânico.
É tirar do ventre algo que chuta.
É tornar visível uma dor, um grito, um suspiro calado.
Há epifanias por todo canto.
A mulher grávida é epifania da vida insistente.
O salário é epifania do esforço.
O raio é epifania das energias do céu.
E a lágrima é epifania da alma.
Hoje, todavia, uma foto foi epifania para mim.
No jornal, detalhes da mão de um usuário de crack.
A polícia, que empunhava armas com mãos fechadas,
Expulsou os dependentes químicos de uma rua que não tinha mais nome.
Tinha apelido: cracolândia.
Os usuários vagavam pelas ruas do centro de São Paulo, como que num êxodo.
Não havia mais salgueiros para harpas serem penduradas na Babilônia.
As mãos rachadas e queimadas da criança-refém da droga
Expunham um calvário silencioso.
Amaldiçoados os que vendem pedras de crack às crianças.
Amaldiçoados os políticos-Herodes que sustentam demagogias sobre uma parcela da população já ferida pelo vício maldito.
Os dedos daquela criança estavam esturricados.
Estavam sedentos.
A pior droga é a indiferença.
Dos que passam pra lá e prá cá e não enxergam vidas além de "nóias".
O maior vício é o de tratar pessoas como objetos de interesses políticos.
E seres humanos como insetos a serem dedetizados de nossa suposta harmonia social.
Dependente é aquele que não consegue se manifestar.
É o anti-epifânico.
É o que se cala diante da dor alheia e dá de ombros como que dizendo:
"-Ninguém mandou cair na droga".
Hoje, se os magos viessem do Oriente novamente,
Não parariam em Belém.
Iriam para Rua Glete, e suas imediações,
E abririam seus cofres diante da humanidade submetida ao descaso.
Os olhos estalados de um usuário de crack
São as estrelas nos conduzindo a um novo presépio.
Onde a humanidade grita com dedos rachados
E corações frágeis.
Que o Senhor nos liberte do pior vício que já existiu.
O vício do silêncio.
A cracolândia hoje é Belém.
Ali, um Menino chora com as mãos estendidas,
Enquanto espera pelos nossos cofres a serem abertos.
Corramos enquanto ainda há estrelas no caminho.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Um pontinho brilhante

Saiu na Folha de São Paulo ontem.
O mundo acabará daqui a cinco bilhões de anos!
A Terra será engolida pelo Sol,
Que com sua sede imlacável por hidrogênio,
Devorará tudo à sua frente.
Mercúrio, Vênus e depois o planetinha azul.
Que mentira!!!
O mundo não acabará!
Quem foi disse que o mundo se resume a esse punhadinho de água e terra em que vivemos?
O universo é muito maior do que o chão onde pisamos.
O Sol que ilumina e aquece também será o que destruirá.
Esticou e puxará tudo a si.
Puxa-puxa sem sabor.
Dentro do princípio vital está também o princípio destrutivo.
O oxigênio de hoje será combustível do fim amanhã.
Existir já é des-existir.
No fim, depois de brevíssimos cinco bilhões de giros,
A esfera azul será engolida, fagocitada pelo Astro-Rei.
E depois, ele próprio, começará a se esfriar...
O calor cederá ao frio.
E pouco a pouco ele também se apagará.
E se tornará uma estrela miudinha, que não piscará mais.
E talvez, seja apontada por dedos extraterrestres em outras galáxias.
Sim, no fim, todos nós seremos Macabeas,
E teremos nossa Hora de estrela.
Os que hoje choram por não apontarem pontinhos brilhantes no cosmos,
E não suspirarem ao lado da pessoa amada mirando o céu,
Amanhã serão consumidos para virar poesia.
O devir faz de nós, meros terráqueos sem brilho,
Estrelas perdidas na escuridão silenciosa do universo.
Viver é dar um passo em direção ao firmamento.
O nosso destino está nas estrelas.
A cada respiro, apagamos um pouco.
O amor apenas antecipa o que nos espera nos céus!
O tempo que devora é o mesmo que faz a vida brilhar.