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terça-feira, 23 de novembro de 2010

Obedecer-se

Ir me obedecendo -
É na verdade o que faço quando escrevo,
E agora mesmo está sendo assim.
Vou me seguindo, mesmo sem saber ao que me levará.
Às vezes ir me seguindo é tão difícil -
Por estar seguindo em mim o que ainda não passa de uma nebulosa.
Que termino desistindo.
(Clarice Lispector)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Sobre cachorros e carrapatos

Meu cachorro está cheio de carrapatos.
Hoje ele andou triste pelos cantos da casa.
Nem chacoalhou o rabo direito.
Coitado.
Um rabo de cachorro quieto é sinal de tragédia.
Tenho visto que uma porção de coisas está cheia de carrapatos.
O carrapato é um ser parasita.
Ele chupa sangue.
Diferentemente dos vampiros,
Que também chupam sangue,
Os carrapatos são seres vivos!
Meu cachorro me pediu pra cuidar dele.
Meu Deus! Quanta coisa pedindo cuidado!
Olhares chupados!
Eu nunca preferi cachorros a gente.
Eu, que gosto de cachorros,
Optei cuidar de ser humano.
Eu escolhi salvá-los com minha vida!
Heróico né!? Poético!?
Gastar a vida se doando pela humanidade!
Porém, tenho visto muitos olhos me lambendo.
Pedindo cuidado. Que não tenho dado como deveria.
Cada ser humano, igual ao cachorro, é um ser vivo!
Todavia, hoje, senti uma grande tristeza,
Ao ver meu pobre animal-ser-vivo sendo chupado,
Sugado por inescrupulosos parasitas,
Descobri que tenho cuidado muito pouco do mundo.
Aliás, tenho cuidado muito pouco de cachorros,
E muito menos de gente.
Olhando os seres vivos, percebo que aquilo que faço,
É uma mísera parte nesse universo enorme.
Não quero passar minha vida me deparando com cachorros tristes,
Implorando carinho e remédio contra carrapato.
Mas como fugir de olhares?
Meu Deus! O mundo me pesa hoje sobre os meus ombros!
Tanto carrapato sugando gente por aí afora...
E eu não consigo sequer arrancar um!
No fundo, começo a crer que o que mais envenena o coração humano,
É esse desejo de querer ser a solução carrapaticida do universo.
Essa vontade maluca de querer resolver o problema do cosmos,
Como se uma ação pessoal fosse interferir na lógica inter-estelar,
Ou como se um espirro que sai do nosso interior,
Fosse mudar a cor da galáxia.
Meu Deus, a vida já foi salva!
Não está em meu poder transformar água em vinho novamente.
Carrapatos vêm e vão sobre todos os cachorros do planeta terra.
E de todos os planetas da via-láctea.
Hoje, decido por contemplar o mundo da perspectiva do carrapato também.
E descobrir nos seres vivos um desejo doido de sangue.
Sugo, logo existo.
Quem de nós não suga ou foi sugado um dia?
Quem de nós não se carrapateou nem que seja por um microinstante?
A pior tentação humana é achar-se a solução de tudo.
No fundo, não solucionamos nada.
Aliás, tudo já foi resolvido,
Quando no alto de uma cruz,
O Sangue se esvaiu até a última gota!
Quem sou eu, para achar que com minhas desajeitadas mãos,
Vou conseguir tirar os carrapatos da vida!
Mas prometo fazer de tudo,
Para não me tornar carrapato também!

sábado, 13 de novembro de 2010

Um casal de pés

À noite, e somente à noite, eles se encontravam.
Passavam o dia, cada qual pro seu lado.
Sustentavam, impávidos,
duas vidas tristes e sem graça.
Já tinha pisado em terras distantes.
Já tinha se ferido em pedras.
Já tinham se desviado.
Mas um dia eles se tocaram.
No princípio, se confundiram.
Não sabiam pra que lado caminhar.
Mas depois, como que numa valsa,
Foram se aproximando,
Se roçando.
E descobriram a alegria um do outro.
Entre calos e unhas,
Confessaram sua agonia de viver só.
E calçaram juntos a mesma vida.
Desde então, já não eram mais um par.
Eram uma comunidade.
De dedos, pêlos e calcanhares.
E faziam seus donos bailarem.
Quadrúpedes bailarinos da vida.
Sim, o amor é a valsa da humanidade.
Nele, somos todos aprendizes.
E roçamos a eternidade com dedos mindinhos.
Os pés também se beijam.
E convidam os corações pra dançar.
No fim do mundo,
Quando as mãos tiverem destruído o universo frio.
Restarão somente os pés.
Incólumes.
Assoviando a esperança em pegadas cálidas.
Passos úmidos do divino em nós.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

VIDA NEUTRA x VIDA PESSOAL (Clarice Lispector)

O grande castigo da vida geral
é que ela de repente pode solapar uma vida;
se não lhe for dada a força dela mesma,
então ela rebenta como um dique rebenta –
e vem pura, sem mistura nenhuma:
puramente neutra.
Aí estava o grande perigo:
quando essa parte neutra de coisa não embebe uma vida pessoal,
a vida vem toda puramente neutra.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

ESCOLHER

Ontem, à mesa de vinho e pizza,
Descobri que o amor é uma escolha.
Não tinha parada para pensar nisso.
A paixão não pede licença.
Ela é incontrolável.
Ninguém consegue escolher por quem,
Ou por que vai se apaixonar.
O amor não.
Ele é incrivelmente associado à liberdade.
Só os livres amam.
Porque ele exige escolhas.
Liberdade é a virtude daquele que pode escolher.
Descubro a cada dia a beleza de escolher.
E de ser escolhido.
Aí está o sentido da vida.
Libertar o eu das amarras daquilo que passa (passio).
Para amarrar-se, livremente, naquilo que é perene.
Como o amor é delicado.
Ele apenas se sugere com as armas da paixão.
Cabe a cada um dizer sim.
E chamá-lo pra dentro de sua morada.
Entrai por esta porta estreita irmãos meus.
E saboreai-o em taças de cristal.