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quarta-feira, 15 de maio de 2013

Concurso Literário

Eu tinha quatorze.
Espinhas. Braços longos-finos. E um cachorro que não usava coleira na rua.
Mas eu já lia jornal todo dia e isso me transformava de mero adolescente em um leitor.
Jornal me fascinava porque tinha frases curtas.
E eu as amo até hoje.
O cachorro, que não usava coleira, entretanto, rasgava, entre outras coisas
Chinelos, Roupas, contas de energia elétrica e o carnê do dízimo.
Mas naquela manhã, o infeliz tinha esquartejado o jornal.
Chineladas.
Compadecido do violentado, tomei-o nas mãos e recolhi-o sobre a mesa do café.
Eu ainda não havia acordado pra mim. 
E foi aquela notícia que me despertara.
"Fulana de tal ganha concurso literário em Presidente Prudente. Aluno de escola pública fica em segundo lugar".
A Fulana de Tal eu não sei quem é.
Mas o segundo eu começara a conhecer.
Calcei os chinelos-educadores-caninos e penteei lambidamente o cabelo pro lado esquerdo.
O cão, que não tinha rabo, pois se o tivesse, já o teria metido entre as pernas,
Agora me olhava com ar de "Leve-me, não nasça sozinho!"
E levamo-nos. Um ao outro. Sem coleiras. Lado a lado.
Rumo ao prêmio de vice. 
Não era um rapaz e o seu cachorro.
Era a Esperança que tinha descoberto na Misericórdia um percurso.
O colégio do prêmio era longe.
Meu chinelo mordido reclamava aos montes pelos montes a serem subidos.
A professora de literatura me aguardava na portaria principal.
Ela era ruiva. E fazia permanente no cabelo. 
Vou lhes confessar (rio enquanto escrevo) ela parecia a Mamma Bruscheta!
Ela olhou meu chinelo. Que timidamente sorriu se encolhendo sob os dedos.
E antes de um bom dia, disse que o cachorro não poderia entrar.
Na sala ao canto, um homem com cara de diretor me esperava.
- "Menino, quem escreveu isso pra você"?
- "Fui eu mesmo. Eu gosto de escrever poesia". 
- "Não minta que é feio. Foi seu pai, ou algum tio seu que escreveu?"
- "Não sr., meu tio só lê o que eu escrevo, mas sou eu que faço".
- "Você poderia escrever outra aqui para eu ter certeza?"
- "Não sr., poesia não é assim igual cachorro, que você chama e vem. (eu esgueirava o olho e via o meu fiel escudeiro sentado, arfando na porta da escola). Poesia é igual gato, que você chama, não vem. E quando você menos espera, pula no seu colo e lhe faz carinho. Às vezes arranha, mas é inevitável."
- "Então você vai ficar em segundo lugar mesmo, porque não consigo acreditar que foi você que escreveu".
- "Mas foi!"
- "Não foi. E o concurso era de literatura e não de poesia!" 
Eu havia descoberto que a melhor palavra não precisa ser pronunciada.
Naquele momento. O silêncio rimou em mim.
Na sala de fora, as professoras aguardavam com xícaras na mãos.
Várias fotos foram feitas.
E eu ganhei apenas uma medalha de prata com um desenho do Drummond na efígie.
A filha da professora com cara de Mamma foi a primeira.
E meu chinelo havia acabado de soltar a correia.
Descalço, voltei sorridente e liberto naquela manhã.
Eu não tinha sido o primeiro. 
Tinha sido o único.
Enquanto isso, o Drummond prateado de meu pescoço sussurrava repetidamente:
"Meu filho, a poesia não suporta coleira".
Sim, eu e meu cachorro tínhamos uma enorme subida pela frente.





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