Visitas

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Kika


Encontrei Kika voando alto. Ao menos uma vez na vida ela voou alto. Vivia triste, empoleirada numa vida rasa e de um pé só. Repetia. Repetia. Repetia. Pé. Tia. Ré. Seu poleiro não falava com ela, mas quem passava ao lado do poleiro sim. Tia Maria cantava ao pé de Kika. Cantava samba-canção e hino de igreja. Assim, entre um dá-o-pé-loro e outro, Kika vivia. Sobrevivia. Talvez não quisesse se privar do canto de tia Maria. Nem do poleiro.
Aconteceu de um dia a Kika descobrir que o poleiro não lhe cabia. Ela era muito grande.
– Tô estressada! Disse ela.
– Eu quero voar!
O lar que Kika queria não era o poleiro, nem os hinos da tia Maria.
- Nem só de alpiste o loro viverá! Recordou ela, citando a encíclica do papa Gaio primeiro.
Rua. A primeira coisa que ela aprendeu foi fumar. Ela queria se relacionar. Ansiosa. Rua.
Nesse mesmo belo dia, quando o café-com-pão de tia Maria atrasou, Kika resolveu acender um cigarro. Acendeu e ascendeu. Suas asas, até então guardadas, abriram-se (Kika tinha um lindo par de asas). Verde. Vermelho. Amarelo. Vôo. Naquele dia ela não cantou. Nem repetiu. À primeira golpeada do Sol, fugiu. Só olhou para o Sol. Só Sol. E as asas tricolores de Kika pareciam uma bandeira desfraldada. Quanto mais subia, menor o poleiro ficava. A loura não tinha jantado na noite anterior.
Kika conhecia a mitologia grega. Sabia o que tinha acontecido a Ícaro. Desobediente, ele se aproximou demais do Sol, tendo suas asas desmontadas e vindo a morrer afogado no mar. Ela não queria derreter. Por isso, voou baixo. Cruzou duas ou três árvores. Ouviu ao fundo um hino meloso que tia Maria cantava, mas preferiu escutar o som da liberdade. Nunca mais o alpiste. Nunca mais o café-com-pão sem graça das manhãs de segunda.
Seu poleiro agora era o mundo. Planando sobre a rua, entre uma sibipiruna e outra, fechou os olhos e sonhou. Imaginou-se apaixonada, botando seus futuros ovos em árvores majestosas, com cavidades silenciosas e aconchegantes. Sonhou com ninhos bem feitos, com florestas de perobas onde descansaria suas frágeis garras. Ouviu em pensamento o som das maritacas e das araras pantaneiras vindo ao encontro.
– Seja bem-vinda à vida Kika. Aguardávamos ansiosas por sua chegada.
Sentiu o raio morno do Sol do meio-dia beijar-lhe o bico volteado e como que já sentindo o perfume das flores do mato, deu uma pirueta no ar de sua alegria. O vento era seu companheiro, enamorado de suas asas coloridas. As asas dos bichos são iguais às nossas. Só se abrem por inteiro quando há vento contrário.
Acontece, que quando menos imaginava, o destino pregou-lhe uma peça. Uma rajada de vento e cansaço soprou a vida de Kika pra perto da minha. Enquanto sonhava de olhos fechados com o paraíso papagaístico que lhe aguardava, bateu de frente a um galho de ipê. Atordoada pela colisão com a realidade da vida. Rodopiou. Acima de mim e meu carro preto, vi o colorido rodar em forma de bicho. Sua cauda reluziu o dourado do calor raquítico de maio. Todo idealismo é mendigo diante do necessário. E Kika viu o necessário da vida se chocar com seu bico num chão do tamanho do mundo. Caiu: em si e em mim.
Parei o carro preto de imediato. Com os olhos esbugalhados eu e ela nos entreolhávamos. Ela de amarelo e eu de preto. Para ela, a aventura de uma vida sem poleiro tinha chegado ao fim. Para mim, começava. Apesar de nunca ter aprendido a fumar, também sonhei com maritacas e araras. Voei. Um bicho que falava era tudo o que queria. Eu e ela tínhamos algo em comum: não gostávamos de hino de igreja. E precisávamos de outro alpiste pra vida.
Quando abrimos as bocas-bicos, gritamos juntos: matei-morri! Sutilmente, estendi o meu braço em direção a ela que, tonta, enxergou em mim a certeza da dureza da vida. Ao invés de troncos de perobas e flores pantaneiras, meu áspero casaco preto. O chão da existência sempre é preto quando se cai. Desfalecida de realidade, restou-lhe emitir um grunhido doce, como se gritasse pra si: - Você venceu vida! Leva-me contigo! A partir daquele momento, Kika era minha. Ela se tornou uma propriedade. Juntos, caímos no galho da realidade simples da vida.
Como se achasse uma pérola, empoleirei Kika dentro do carro preto. As asas coloridas do bicho se fecharam sobre o assento do veículo. Suas garras pareciam ainda mais frágeis sobre o carpete sem graça no qual se sustentavam. Enquanto dirigia, tentei estabelecer diálogo: com a Kika. Com a vida. Ela, já um pouco melhor, educadamente, apenas assoviava como que dizendo: - Tudo bem, conheço teus poleiros, vamos juntos! E assim chegamos em casa. Ela caída do vôo da liberdade. Eu, livre, encantado com a crueza da vida!
A primeira coisa que lhe providenciei foi alpiste. A história sempre nos devolve o alpiste desperdiçado. Ela, consciente de si e de mim, comeu sossegada. De fato, se Ícaro pecou por aproximar-se do Sol, Kika derreteu suas asas na ilusão de uma vida sem limites. Comprei-lhe um novo poleiro em seguida. Não com um, mas com três galhos. Ela agora poderia ter três pés se quisesse. Cabisbaixa, subiu lentamente na nova casa. Roçou o bico nas grades, chacoalhou-se e dormiu, suave, como um passarinho. Daquele dia em diante, ela não saiu mais do poleiro. Nem eu. E nunca mais repetimos.
A noite veio mansa. Acredito que no meio da madrugada, enquanto eu gemia feliz em minha cama, a lourinha afirmava para si mesma que nunca mais desafiaria a própria liberdade. Se ela sonhou? Acredito que sim. Sonhou com maritacas e araras. Todas coloridas, voando livres, rasgando os céus. Mas sem jamais provarem a beleza de se contentar com a finitude. A maravilhosa finitude que, para Kika e para mim, se coloriu naquele dia.

Um comentário:

Lucyana disse...

Muito bom!!!
"Viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz".