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sexta-feira, 1 de abril de 2011

O porco e a feijoada

OTELO

Foi um alvoroço no chiqueiro. Os milhos lançados com fartura nos coxos apenas deflagravam a sentença anunciada: dali a dois dias haveria uma feijoada. O anunciador da desgraça fora Otelo. Cachaço puro por natureza, no alto de seus três anos e mais de cento e cinqüenta quilos, ouvira na beira do tanque a notícia mais desoladora que se podia ouvir. Otelo era um porco gentil. Não fazia barulho ao fuçar com delicadeza a lavagem-dele-de-cada-dia que as empregadas gordas e feias da fazenda depositavam religiosamente ao sopé do tanque de cimento. Como tinha as bochechas rosadas, e uma pinta engraçada no meio da testa, foi sempre tratado com carinho e simpatia. Ele confiava nos humanos. Principalmente porque estes, que não tinham pinta na testa e nem comiam lavagem, lhe davam aos baldes o refugo de suas refeições. Era uma apoteose em forma de cascas murchas de frutas e bagaços. Vira e mexe, uma das empregadas alisava-lhe o focinho ao que Otelo respondia com um leve sorriso. Naquela época eram os animais que sorriam. Há um quê de tempero na gentileza.
A notícia de Otelo se espalhou entre todos. Uns, desesperançados, debatiam-se nas cercas imundas, blasfemando pelo fato de terem nascidos porcos e resmungando qualquer palavra de ofensa ou deboche. Outros, preferiam se revoltar simplesmente ignorando as espigas douradas como numa greve de fome. Esses, morreriam sim, mas magros, desautorizando aos nojentos humanos o prazer de um torresmo gordo. Houve ainda aqueles que não acreditaram na profecia e continuavam a se esbaldar, orgiasticamente se entupindo com aquelas porções generosas e ingênuas de ração, estranhamente oferecidas. Em meio àquele tumulto, alguns simplesmente giravam ao redor de seus rabicós tristes, e rolavam desesperados sobre a lama escura gemendo seus futuros: Porca Miséria! O mais triste foi ver a sra. Malhada, reprodutora-mor do chiqueiro, a rainha-mãe da vara, genitora de mais de cem filhotes, cruzados, puros, pretos e brancos, enfiar seu focinho na terra e deixar escorrer uma lágrima miúda que se juntou imperceptível ao barro frio do chiqueiro.
Otelo, o profeta do mau agouro se sentiu culpado. Naquela noite, após anunciar o armagedon suíno, aconchegou-se às palhas secas no canto escuro do chiqueiro e suspirou sem roncar. Olhou suavemente, num giro de 180 graus o chiqueiro em pandemônio. Medo. Desespero. Risos trágicos. À beira do coxo d’água, dois filhotes se coçavam, espantando as moscas verdes. O Deus dos porcos e dos homens haveria de fazer algo. A vida não poderia se resumir a fuçar, comer, procriar, e morrer. Otelo já havia contemplado a morte de um igual. Uma faca embaixo da perna dianteira esquerda suscitou um esguicho vermelho. Implacável. Grito agudo. A finitude lhe era apresentada em forma de grito. Há um peso imenso nos ombros daqueles que anunciam as moscas. Otelo era o grito do fim. O apocalipse em forma de feijoada. Os porcos também sofrem de esperança.
O dia amanheceu sereno. A confusão tinham tomado conta do chiqueiro. Os porcos, ao sentirem o fim se aproximando, começaram a se perguntar: Qual de nós? Um deles, fatalmente seria misturado a feijão preto, cebolas, couve e farofa. Alguns, mais exaltados, propuseram uma revolução suína. Quando o dono da porcada chegasse, avançariam em conjunto. Fincariam os dentes graúdos nas pernas e proclamariam a liberdade. Mas, os mais velhos, mórbidos e redondos, logo desaconselharam, tendo em vista a imensa capacidade humana de matar. Uma revolta dessas poderia representar o fim de todos os porcos e não apenas de um só. Decidiram então tirar na sorte, jogariam par ou ímpar com as patas e aquele que perdesse o maior número de jogadas seria o eleito. Mas então se lembraram que suas patas fendidas em duas partes impossibilitaria outro resultado que não um número par. Resultados previsíveis! E além disso, haviam aqueles que já estavam se acostumando com a caridosa dose de ração, ao qual valeria a pena qualquer sacrifício. Ainda mais se esse sacrifício fosse o de “outro” porco. Nos íntimos de seus corações, alguns dos habitantes do chiqueiro até que gostaram da idéia, pois, afinal, haveria mais espaço para os banhos de lama e menos um focinho não faria tanto mal assim. O chiqueiro são os outros! Enfim, um mais revoltado, cuspiu sobre as espigas e bradou, vomitando sua revolta: - Somos aquilo que comemos! Lavagem! Uma multidão de lavagem! E o niilismo se instaurou de vez entre a porcaria. Naquela tarde a sra. Malhada reuniu em suas tetas caídas sua última ninhada e amamentou como se fosse a derradeira vez. Um leite puro jorrou cálido e saciou o universo.
Otelo não havia dormido. Como voto de protesto, não foi à beira do tanque, como de costume, receber o carinho com lavagem das empregadas. Amuou-se. Alguma coisa precisava ser feita. E rápido, pois ao fundo do quintal, já se ouvia o amolar tétrico da faca do caseiro. O som da faca lhe fazia lembrar o grito do irmão-porco assassinado. Emergência árida da existência. Otelo caiu em si. No chiqueiro de meus irmãos há lavagem em abundância! Há iguais! E eu aqui, sofrendo com as bolotas de pão que os humanos sujos me oferecem. Sentiu-se pela primeira vez elemento cósmico redentor. Sobre suas têmporas, uma veia saltou. Ele era parte de uma raça. Viu que tinha quatro patas fendidas. Um focinho peludo e um rabicó enrolado. Ele era o Todo. Ele era capaz. Lembrou-se dos filhotes se coçando junto ao coxo, dos gordos anciãos, das tetas da sra. Malhada. Sim, valeria a pena!
A faca reluziu embaixo da jabuticabeira. As empregadas tinham prendido os cachorros. Um tacho foi ao fogo. No chiqueiro, os porcos se aninharam todos, tremendo e roncando pavorosamente. Um seria escolhido. Quem irá por nós? Entre patas e focinhos estava Otelo, com os olhos fixos na faca fria. Quando os pés descalços do caseiro adentraram a lama úmida do chiqueiro, o som ensurdecedor dos porcos era um manifesto por misericórdia. Então, como um condenado que caminha rumo ao patíbulo, Otelo deu três passos à frente. Olhos fixos na faca. Por um breve segundo, um silêncio sepulcral tomou conta da vara. As tetas de Malhada se enrijeceram num rosa-bebê suave. O caseiro tinha uma mão grossa e repleta de dedos. Naquele momento, a primeira nota de um samba foi dedilhada embaixo da mangueira. Entre a primeira punhalada e a morte heróica de Otelo, menos de dois segundos se passaram. O suficiente para Otelo recitar a frase pascaliana: O silêncio eterno desses espaços infinitos me apavora. A tarde foi caindo tímida. As mulheres fatiavam a couve bem fininha. Elas eram mineiras.
Em menos de duas horas tudo estava consumado. As tetas de Malhada murcharam. Os porcos passeavam livres no quadrado chiqueiro. Os mais velhos, redondos, sorriram aliviados. Tudo voltava ao normal. A vida estava reconciliada. E um melancólico samba de Cartola se misturava ao barulho do tacho. Otelo se transformara em Infinito.

3 comentários:

mariab disse...

Meu Deus!.
Você é sem comentários, simplesmente genial!

Maximiliano disse...

Professor, muito bacana esse conto. Eu brisei quando o senhor leu durante a aula, resolvi entrar aqui pra poder ler novamente. Muito bacana; deu o que pensar...abraço.

Zeu Tony Lopes disse...

Professor, professor..., professor! Que dizer, que palavra delgada poderia expressar a divina música que está a pulsar no âmago de seu insigne ser! As palavras inscritas em Otelo muito tem a dizer sobre a vida..., sobre o belo...

Dominus tecum!