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segunda-feira, 26 de março de 2012

A passagem das horas (parte I)

Pessoa me afeta.
Desculpem-me, mas com ele rezo.
Transcrevo aqui trechos de uma de suas poesias mais sublimes.
Ela tem me acompanhado a alguns anos.
E a cada vez que releio,
Uno-me ao altar do Universo,
E sinto-me inebriado pelo Deus.
***

Todos os amantes beijaram-se na minha'alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.
Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas as emoções,
Paragaram-me bebidas todos os acasos das sensações
Troquei olhares com todos os motivos do agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstracta das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida.
Obter tudo por suficiência divina
As vésperas, os consentimentos, os avisos,
As coisas belas da vida
O talento, a virtude,a impunidade,
A tendência para acompanhar os outros a casa,
A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar já para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, uma frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.
Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois deem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.
(Álvaro de Campos)
(Continua)

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