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sexta-feira, 24 de agosto de 2012

A mulher e o santo

Como meu blog tem muitos novos leitores,
Republico aqui um de meus contos preferidos,
Escrito há cinco anos...


Amanheceu apaixonada pelo Santo.
Do nada, assim, sem mais nem menos. Acordou naquele dia com um sorriso bobo no rosto, com uma alegria nova, incandescente, igual à de uma adolescente. E isso ela já não era. Olhou-se no espelho, notou-se em rubor. A vida enfim fazia sentido. O assobio com o qual se revestia a caminho do trabalho transparecia a doce magia do amor. O Santo seria dela. Pra sempre. Não mais a solidão, mas a certeza do alguém. Mas, convenhamos, o Santo não era qualquer um. Era de gesso, moderno, não esses santos barrocos feitos de madeira ou simplesmente de pau e pano. O Santo dela era diferente. Tinta nova o recobria: fresquinha. No alto de seu pedestal de mármore, o imaculado de Deus se postava como um herói. Nada o podia atingir. Sua história era de lutas: um mártir. Seu peito erguido, com a cruz na mão, projetava a força do homem-forte. Ideal. Aquelas flores, ora vivas, ora murchas aos seus pés não traduziam a imponência da sua história. Seu rosto, árido, mas ao mesmo tempo sereno, esculpia no coração dela um sonho, um desejo. A partir daquela manhã, ela passou a freqüentar a capelinha três vezes ao dia. Sempre aos pés do Santo ficava. - É promessa! Respondia ela aos mais curiosos, não acostumados com aquela mulher ali, ajoelhada e com os olhos fixados no alto do pedestal. Quando a missa acabava e as beatas iam, ficava ela, só ela, com os joelhos pregados ao chão e o coração voando. Trazia sempre flores novas. Num jarrinho branco e dourado, depositava fielmente duas rosas a cada ida. Vermelhas como a paixão. Cheirosas como ela. Toda manhã, rigorosamente, após o banho, ungia-se de perfume: sempre o melhor. O batom era discreto. Maquiagem, só nos olhos, pra disfarçar as rugas que, teimosas, insistiam em descortinar o tempo cada vez mais cruel. Tudo por causa do Santo. seu Santo. Paixão não tem freio. Aquece e esquece. Com o passar do tempo, as três visitas se transformaram em seis, doze, vinte. Foi quando ela se viu lá, o dia todo, comendo lanches que as beatas lhe davam, misericordiosamente. - Tadinha, sua promessa é grande! - Essa sim é mulher de fé! - Reze por nós minha querida! Exclamavam as doninhas, maravilhadas com a sua "devoção". Os olhos vidrados na estátua revelavam o êxtase. Algumas disseram até que a viram levitar numa tarde, quando os sinos repicaram convocando os fiéis para o Angelus das seis. O que importava era que, para ela, só existia o Santo. Admirava seus braços estendidos, o contorno de suas pernas, envoltos por uma calça justa e seus pés sólidos, grudados ao pedestal. Na firmeza dele, descobria um mundo dentro de si. A face lhe era a parte mais atraente. O sorriso escondido e o olhar austero descortinavam o infinito. A felicidade plena estava ali, naqueles olhos voltados ao céu. O homem que nunca teve. E nunca terá. Nas suas orações, rezava baixinho, pedindo a Deus pela vida do Santo. Quando não havia mais ninguém na igrejinha, ousava erguer a voz. O murmúrio virava diálogo. Triálogo: Ela, Santo e Deus. Ela que pedia ao Deus para o Santo ser só dela. Deus que se calava. E o Santo que sorria. Só ria. Passou a ter ciúmes dele. Quando uma ou outra beata acendia uma vela, ou colocava uma flor aos pés do pedestal, seus olhos se enchiam de fúria. Ao perceber alguém atrás de si, rezando ao homem de Deus, esgueirava-se no olhar para coagir a rival, insinuando com pequenos pigarros a sua insatisfação. Ao deitar-se, ficava imaginando se o Santo atendia àquelas sirigaitas atrevidas e às suas preces. - Será que ele vai curar o filho daquela mulher de vestido marrom? - Duvido ele arranjar o emprego pro marido daquela lá? - Quero ver se ele vai escutar o choro da filha de Dolores e dar jeito dela ir bem na prova! O ciúme a envolvera. No dia da procissão, quando o padre e o sacristão prepararam o andor, ela se dispôs prontamente a carregá-lo onde fosse. - Isso é coisa de homem senhora, deixe que outros o levem! - Advertia o religioso. Mas ela, cega pelo amor, não largou do cabo que sustentava o Santo e com a cauda do olhar, rebatia qualquer uma que se aproximasse dele. Era a única mulher a carregar, com sofreguidão, uma haste do andor pesado. Além das flores, passou a levar presentes. Imaginou que o Santo, em sua impavidez, precisasse de algum agrado para sustentar seu heroísmo. E o relacionamento. Começou com pequenos agrados: doces e outros quitutes. Depois passou às roupas. - Esse suéter vai lhe cair bem e esquentá-lo na luta contra os hereges! - Gastava tudo o que tinha. Outro dia deu-lhe na cabeça comprar uma correntinha de prata. Colocou-a numa caixinha bonita e enquanto sussurrava suas paixões, depositou aos pés da estátua. Seria lindo vê-lo com aquele presente ao pescoço. Imaginou-o no alto de um cavalo branco, chacoalhando aquela corrente de um lado pro outro, fazendo-a repicar em seu peito, peludo como ela imaginava. Ajoelhada, mas feliz, ela se aquietava com um sorriso bobo. Às vezes, emitia um grunhido de gozo, transbordando a doce ilusão daquela paixão. Numa noite, em casa, enquanto se revolvia de um lado pro outro na cama, pensando no Santo, teve uma idéia. Genial. Diabólica. Por que não ter o Santo só pra si? Em sua casa. Em sua cama. Quando a luzinha vermelha do juízo enfraqueceu, pôs-se de pé. Vestiu uma capa preta, discreta e saiu pela rua. No meio da madrugada, só uns cachorros vagabundos testemunharam seus passos em direção à capelinha. Sem dar alarde, adentrou aquele espaço sagrado com uma sutileza de grandes assaltantes. Nem o chão de madeira da igreja conseguiu ecoar os toc-tocs invisíveis de seus sapatos de borracha. Seu coração palpitava. Os olhos esbugalhados de tensão não se intimidaram pelo escuro sepulcral daquele lugar. Seu desejo iluminara o caminho até o pedestal. Com a ajuda de um banquinho, subiu até o Santo. Tocou. Quando seus dedos longos e finos sentiram o frio do gesso, sua alma incandesceu. Mas, temendo fazer barulho, engoliu o prazer do proibido e cobriu a estátua com um saco de estopa. Mais discreta ainda, desceu do pedestal e rumou atenta para casa, onde o leito nupcial estava pronto. Só um latido seco foi ouvido pelo caminho. Abriu a porta de casa devagar. Mesmo morando sozinha desde quase sempre, não queria, nem ela, escutar o ranger sacrílego daquele seqüestro. Não acendeu a luz. Suas mãos estavam geladas. Entrou no quarto e, delicadamente, depôs seu Santo sobre a cama. Como uma noiva em lua-de-mel, despiu a estátua de seu fraque de estopa, lentamente, enquanto o coração lhe parecia sair pela boca. Não se esqueceu, claro, de lhe colocar a correntinha de prata no pescoço. Na penumbra do aposento, não via nada. Só sentia. Só amava. Ali estava ele. Nu. Esparramado sobre seu leito, indefeso, pronto para consumar o laço estabelecido pela paixão. Foi quando se inclinou para beijá-lo. Fechou os olhos, abriu a alma. Seus lábios secos pelo nervosismo tocaram levemente os lábios inertes do Santo. Então seu coração abriu. Desfaleceu. Acontece que a paixão não é inércia. O desejo move. Num momento de descuido, escorregou de lado e caiu à beira da cama, à margem do amor. Com ela foi o Santo. Despedaçada no chão, ela viu a estátua romper-se, de dentro pra fora. O barulho a assustou. Mais do que depressa, pôs-se de pé acendeu a luz enquanto ouvia os latidos se multiplicarem rua afora denunciando seu crime. Foi quando viu que o Santo tinha se quebrado. Viu que era uma imagem. Uma fria imagem de gesso. E, por não ser flexível, tinha se esquartejado em centenas de pedaços. Mais do que isso: viu o vazio com o qual era constituído. O Santo era só vazio por dentro. Oco. Sentou-se à beira da cama, tomou um caco nas mãos e chorou. Não de tristeza, mas de alegria. Tinha descoberto a felicidade da vida naquele vazio desnudado da imagem. Os Santos também são vazios. Ela não era a única oca do universo. E enquanto espezinhava os restos mortais do Santo, gargalhava, dançando com a vassoura que haveria de sepultar os pedaços de sua paixão. No oco de si, sentiu-se pela primeira vez. Santa. 

4 comentários:

mariab disse...

Parabéns por todas as letras, parágrafos e personagens que nos fez e faz conhecer. Hoje é meu blog predileto , ler e relembrar seus textos é um grande privilégio, Deus te ilumine mais e mais.

mariab disse...

“Hoje, deu vontade de chorar e eu só queria um colo para encostar minha cabeça e fingir que o mundo lá fora não existe.”
(Clarice Lispector)
-"Dai-me de novo um Espírito Decidido"
Reze por mim amigo, Sua Benção!

mariab disse...

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge o meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.( Adélia Prado)
Não esquece nós do blog, saudades, Beijo!
Cum Deus!

Suely Melo disse...

Que conto lindo, professor! Uma leitura agradável e envolvente que nos faz refletir sobre as coisas da vida.

Adorei!