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quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

A confissão de uma mentira

Eu devia ter 11.
Magrelo e esticado,
Vivia debruçado sobre as almofadas da biblioteca municipal de minha cidade.
Ali, eu e as palavras paquerávamos,
Eu gostava de seu cheiro que, vez ou outra,
Levava impregnado nos dedos para casa.
Meus olhos nunca foram monogâmicos.
E percorriam de tudo: dos gibis do recruta Zero à Barsa...
Disciplinado, eu reservava sempre meia-hora do dia para as poesias.
E outra meia-hora para decorar palavras do dicionário...
Sim, naquela época, o Google não existia e restava-me o empoeirado Aurélio.
Entretanto, como o amor e o crime andam de mãos dadas,
Veio-me naquela tarde uma ideia diabólica, impura:
Levar pra casa um livro de adulto.
Sim, eu queria, eu precisava, eu desejava.
E afinal, eu já tinha 11
E os primeiros pêlos brotavam como cebolinha espetada em minha face.
Seria o meu rito de passagem.
Minha primeira grande transgressão.
Todavia, era necessário que houvesse estratégia militar.
Primeiro, a escolha.
Que livro ler? Que autor?
Lembrei-me então da novela das oito que todo mundo assistia.
Tieta do Agreste!
Se todo adulto babava diante da TV
E as curvas de Betty Faria seduziam os queixos depois do Jornal Nacional,
Era porque a coisa devia ser boa.
Naquele tempo eu ainda era ingênuo,
Porém, como todo ingênuo, um tanto maquiavélico e calculista.
Com o cabelo lambido de lado e a calça nos calcanhares,
Aproximei-me da trincheira-balcão da bibliotecária.
Ela era redonda, suava a cântaros e usava um óculos com armação de borboleta.
Na verdade, era um tanque de guerra em forma de tetas.
E começou o meu primeiro grande pecado:
- Olá, tudo bem com a sra.?
- Tudo bem Thiago, e você? Já terminou "A hora da estrela"?
- Ainda não, em casa, na hora que vou ler, o pessoal fica vendo novela. (1a. Mentira)
- Que pena, é a Tieta né? Mas novela também é bom, sobretudo as do Aguinaldo Silva...
- Sim, to pensando em levar um livro parecido pra minha mãe ler, ela gosta. O que você sugere? (2a. Mentira)
- Ahh, seii!!! (A sutil desconfiança feminina! hoje eu me recordo, ela sabia que era mentira! Mas como uma veterana de guerra, que cede um soldado para não perder uma torre, consentiu, fingiu.)- E porque você não leva pra ela alguma coisa de Jorge Amado?
(Sim, Jorge Amado, era esse o nome das aulas de literatura e dos canais de telecurso das 6 da manhã, era esse o porta-voz da literatura de verdade, das mulheres, dos conflitos reais e não de brincadeira. Eu precisava dele, eu faria qualquer coisa por ele).
- Humm, nunca ouvi falar! (3a. Mentira) - Qual a sra. indica?
- Que tal "Teresa Batista, cansada de guerra?" (Sim, a bibliotecária enorme sabia o que eu desejava).
- Pode ser!! Acho que ela vai gostar! (A ingenuidade e o cinismo são inseparáveis).
Ela assoviava uma música de Caetano enquanto buscava entre as prateleiras o objeto do crime.
Eu suava frio, e colocava as mãos no bolso, disfarçando.
Três ou quatro pessoas aguardavam na fila. Tenho certeza que me vigiavam.
Eu teria que ser rápido.
E se eles vissem o livro em minhas mãos?
E se meu pai soubesse?
Qualquer deslize seria fatal.
- Pronto, tome aqui, é só assinar. (Ela tinha uma agilidade em encontrar os livros que parecia incompatível com seu tamanho)
- Sim, obrigado, depois lhe conto se minha gostou ou não. (4a. Mentira).
- Aproveite!!! (Pronto, eu e a bibliotecária nos tornamos cúmplices. Agora era eu que suava a cântaros e ela sorria, tenho certeza que senti seus olhos me conduzindo até a porta).
Enfiei o livro embaixo dos braços com a capa voltada pra dentro.
No ônibus, não folheei uma página sequer para não dar alarde.
Eu havia quebrado as regras.
Eu havia me tornado um criminoso.
Um sequestrador, para ser mais exato.
Quando cheguei em casa, palpitante.
Desovei-o sobre minha cama.
Lavei as mãos e, silente, debrucei-me sobre ele.
Não consegui ler.
Fiquei-o observando emudecido, com as páginas amareladas...
Eu e o livro tínhamos um pacto.
Éramos dois mundos diferentes.
Ele, o mistério.
Eu, o desejo.
E sobretudo nos olhávamos, nos olhávamos...
Foi aí que descobri que eu tinha sido sequestrado por ele.
E não ele por mim.
A noite chegou quietinha...
Na TV, a Tieta rebolava,
E eu, no quarto, permanecia casto.
A culpa me impediu de consumar o fato.
E a noite de núpcias terminou em poesia.
Eu já estava perdidamente apaixonado.

Um comentário:

Suely Melo disse...

Q graça! Mentirinha perdoável. Adorei, Thiago! Primeiro, óbvio, porque gosto muito dos seus textos. Segundo, porque deu um click em lembranças minhas num universo tão distante, tão particular. Vc sabe que é um dos meus poetas favoritos, certo? Ok. Bjos